domingo, 29 de novembro de 2009

CV(EXPRESSO):Jorge Carlos Fonseca faz abordagem sobre a Justiça em Cabo Verde (parte 1)


Jorge Carlos Fonseca faz abordagem sobre a Justiça em Cabo Verde (parte 1)

Esta é uma primeira parte de uma grande entrevista do jurista e jurisconsulto, Jorge Carlos Fonseca, à Rádio Atlantico, em Holanda. Várias temáticas são abordadas, e com a devida vénia do autor, Norberto Silva, publicamos nesta edição on-line excertos em que o entrevistado debruça sobre aspectos ligados ao sector da justiça, nomeadamente, a restruturação do sector, a questao do Tribunal Constitucional, enfim, uma abordagem profunda. Confira.
Dr. Jorge Carlos Fonseca: o sector da Justiça em Cabo Verde tem sido muito criticado. Queria pedir-lhe que falasse dos males de que padece a justiça cabo-verdiana e o que fazer para corrigir o que está errado?
Quanto ao problema da Justiça em Cabo Verde, não é de agora que são feitas críticas sobre a sua eficácia e funcionamento. Isso dura já há alguns anos. Lembro-me, por exemplo, que em 2001/2002 ganhei um concurso financiado pelo Banco Mundial e constituí uma equipa para fazer um estudo sobre o Estado da Justiça em Cabo Verde. Na altura, fizemos uma série de recomendações ao governo, mais precisamente ao Ministério da Justiça. No documento fizemos 56 recomendações para melhorar, eventualmente, o estado da Justiça em Cabo Verde...
Podia ser mais explicito...
Passava por várias coisas como, por exemplo, reformas legislativas, algumas já em curso como as penais, mas outras em áreas como o processo civil; reformas institucionais, como a instalação do Tribunal Constitucional ou a Provedoria da Justiça, juízes de execução de penas pelo menos na Praia e em Mindelo, o combate à morosidade de justiça, introduzindo critérios de responsabilização e de fiscalização efectiva e técnica, melhoria da qualidade de prestação de agentes da justiça a todos os níveis: juízes, magistrados do Ministério Público, advogados e o próprio ministério de Justiça, portanto, um conjunto de factores entrelaçados que contribuem para que a justiça não satisfaça a nossa comunidade.
É claro que com o tempo surgiram fenómenos novos como a criminalidade organizada, e parece-me que o aparelho da justiça não conseguiu dar respostas a esses novos fenómenos, quer dizer, há soluções que não foram ainda encontradas e por vezes as pessoas ficam apenas pelos discursos, em fazer mais diagnósticos, quando há aspectos fundamentais que têm de ser decididos. Por exemplo, a questão da gestão da justiça, dos Conselhos Superiores das duas Magistraturas.
O Conselho Superior de Magistratura não funciona bem, tem que ser alterada a sua composição, tem de haver mudanças no modo de seu funcionamento, de forma a que não seja apenas um órgão burocrático. Precisa ter meios para que possa fazer uma gestão mais ou menos autónoma dos serviços judiciários. Não se pode aceitar, ou mesmo compreender, que tribunais ou procuradorias dependam do ministério para comprar, por exemplo, um computador, um lápis ou uma caneta. Quer dizer que a sua dependência do ponto de vista de gestão e de recursos materiais por parte do governo é uma forma de efectivamente ele depender do executivo.
Em segundo lugar, quando os Conselhos não exercem as funções que lhes são atribuídas, não só de gerir disciplinarmente, gerir transferências de magistrados, mas digamos, ser uma espécie de pivôt para ver a questão da produtividade dos magistrados, o problema da sua responsabilização... Os problemas complicam-se...
É incompreensível que processos prescrevam depois de estar parados 5, 6, 7 anos ou mais. A não ser em casos excepcionais em que haja verdadeiramente causa justificativa ou de desculpa O magistrado que tenha esses processos e os deixe prescrever injustificadamente deve ser responsabilizado, porque existe um princípio constitucional que é importante em qualquer Estado de Direito Democrático, e este princípio diz que os juízes são independentes e irresponsáveis, mas têm de responder pelas omissões graves. A irresponsabilidade é para garantir a independência, fundamental num estado de direito, a irresponsabilidade é pelo conteúdo das decisões que tomam. Agora, não se pode optar pela irresponsabilidade por omissões, e, se isso acontecer, tem que haver alguma instância que os responsabilize.
Há outras questões como, por exemplo, a qualidade do serviço de Justiça. Hoje em dia, se pensarmos na generalidade dos nossos agentes judiciários, os melhores juristas não estão na magistratura, pelo menos a maioria.
E porque não estão...
Porque a carreira não é suficientemente atraente, talvez porque o estatuto remuneratório não seja o mais adequado, ou talvez porque também não se tem um reconhecimento público dos magistrados na sociedade cabo-verdiana e também porque as pessoas são condicionadas. Quer dizer, a independência da Justiça que é fundamental num Estado Direito ainda não foi concretizada de forma razoável, indiscutível. Podemos chegar lá, porém, há ainda um longo caminho a percorrer para se chegar a uma verdadeira independência do poder judicial em Cabo Verde. E questiono ainda a qualidade e a consistência do Poder Judicial. Temos que ter os melhores na Magistratura, mas ainda isso não acontece: seguramente, é preciso trabalhar para tanto.
Por tudo o que disse fico com a impressão que pensa que o actual Supremo é composto por pessoas com pouca preparação para o cargo...
Diria de outra forma: que podíamos ter um Supremo Tribunal melhor, com melhores condições para realizar justiça a um nível elevado e de grande responsabilidade. Primeiro, devia ser mais alargado, como há muito defendemos no tal estudo. Segundo, devia ter alguma especialização. É inadmissível que em pleno séc. 21, não tenhamos magistrados especializados em vários domínios do direito. Aliás, isso é uma das 56 recomendações que fizemos ao Ministério da Justiça. A criação de um Tribunal Constitucional autónomo que teria a seu cargo a jurisdição constitucional e a jurisdição eleitoral.
Voltando ao Supremo, tínhamos que alargar para ter algumas Secções. Uma secção criminal, quer dizer, não faz sentido hoje, que na última instância não haja uma secção criminal. Ou seja, não se pode ter um Juiz hoje que seja bom em Direito Criminal, Família,Administrativo, Trabalho etc, a não ser que seja um génio. E génios são por natureza raros...
Portanto, quando faz tudo ao mesmo tempo, não pode ter habilitações técnicas para decidir com o mínimo de qualidade toda a questão jurídica, ainda mais hoje em dia que o direito se torna mais complexo e diversificado. E depois para estar no Supremo tem que haver critérios de mérito, é preciso fazer concursos, isto é, necessário para se ter pessoas qualificadas que chegam ao Supremo devido à sua competência e mérito.
Um outro aspecto: é preciso que haja condições estatutárias que permitam de facto a independência dos juízes. Repare no que acontece agora, em que um juiz do Supremo fica cinco anos no cargo e para renovar o mandato está dependente do poder político e isso pode condicioná-lo na tomada das decisões judiciais porque o poder político pode ou não renovar o seu mandato.
É preciso que haja condições de estabilidade que se constituem pressupostos de independência do poder Judicial.
Outro assunto que carece de atenção é o processo civil, nomeadamente o chamado processo executivo que necessita de uma reforma profunda, que precisa ser menos burocrático, mais eficaz, mais rápido, mais expedito. Há muita gente que defende que é preciso fazer mais legislação, mas às vezes temos legislação que proporciona condições para uma boa justiça, mas não serve porque os agentes da Justiça não as aplicam efectivamente, resistem até, ou por incompreensão, ou por preconceitos,ou por dificuldades próprias de interiorização dos principais vectores da reforma e a resistência é uma espécie de auto-defesa técnica... e não são responsabilizados.
Tem que se ter inspeções verdadeiras e autónomas. Não se pode ter um Juiz Inspetor, por exemplo, que vai inspecionar o seu colega e, que está condicionado porque, por exemplo, dentro de um ano ele pode ser Juiz e o colega inspector invertendo-se assim os papéis. Portanto, a Inspeção deve ser também para todo o serviço da Justiça, para todos os tribunais. Tem que ser autónoma, servindo inclusivé para o Supremo Tribunal de Justiça que não é actualmente inspecionado. Mas para isso as inspecções têm de ter determinadas características e exigências.
É preciso que haja verdadeiras inspeções que não são meros rituais, mas sim que avaliem a qualidade das decisões judiciais. Há por exemplo juízes que produzem repetidas decisões erradas ou tecnicamente infundadas, que não aplicam bem o direito, que proferem sentenças, que, digamos não sejam consentâneas com o direito vigente, portanto, um juiz assim não pode estar a exercer um tal cargo.
Podia-se resolver isso de alguma forma com a criação da figura do Provedor de Justiça que é uma instância importante porque é um instrumento de fiscalização que pode ser muito útil.
Se tivermos um Provedor de Justiça, uma personalidade importante, capaz e independente, quando o cidadão tem problemas recorre a essa figura que pode fazer andar os processos por exemplo. Claro que não interfere, não pode interferir nas decisões judiciais, mas pode interrogar, por exemplo, sobre o porquê de um processo que dura 3 ou 4 anos. Existem prescrições incríveis que não se justificam, há processos que andam rapidamente, enquanto outros ficam na gaveta, o que pode levantar legitimamente suspeitas... então é um mar de problemas.
Para mim o diagnóstico está feito há muito tempo, falta é um governo com coragem política para tomar certo tipo de decisões, mesmo que firam alguns interesses, nomeadamente alguns interesses corporativos. Por vezes dá a idéia de que andamos à volta dos problemas da justiça. Fingimos que estamos a resolver os problemas mas não tocamos onde devemos tocar, porque é incómodo, porque é difícil, porque pode trazer de imediato reacções negativas e fortes.
Quando se fala em instalação de Tribunais, como o Constitucional, que exigem especializações de Magistrados não estou a ver em Cabo Verde, conforme o senhor também reconheceu, muita abundância de especialistas em Direito...
Eu acho que existem já em número suficiente. Às vezes é uma questão de procurar dentro e fora do país. No caso do Tribunal Constitucional, a lei prevê um mínimo de três Juízes, que considero um número irrisório e pouco adequado por muitas razões até de funcionalidade. Em Cabo Verde pode-se encontrar neste momento um número de pessoas qualificadas para exercer tais funções, não apenas os tais 3, mas 5, 6, 7 ou 8 pessoas que possuam condições técnicas, prestígio e capacidade para integrar o Tribunal Constitucional. Se se melhorar as condições de as pessoas que trabalham na Magistratura é possível obter bons quadros para esses Tribunais.
Hoje em dia temos várias pessoas que se formam no exterior (Portugal e Brasil) e tem-se uma Escola de Direito e outras Escolas que também ministram uma licenciatura em Direito. É preciso que haja uma boa política de formação por parte do Estado que abranja as universidades e institutos que possam ter condições para dar formação em áreas especializadas do direito, pós-graduações, mestrados, doutoramentos....
O Senhor é professor no Instituto Superior de Ciências Jurídicas e Sociais de Cabo Verde. Incentiva os seus alunos a prosseguirem com alguma especialização?
Nós somos a primeira Escola de Direito em Cabo Verde. Estamos neste momento no quarto ano e temos cerca de quatrocentos e tal alunos nos cursos de Direito. No quarto ano temos cerca de 60 e tal alunos e com a taxa de reprovação que temos tido em média, podemos dizer que daqui a mais um ano formaremos cerca de 30, 40 ou 50 alunos, e desses sairão 12 a 15 pessoas, talvez uma vintena de nível razoável e alguns de bom nível. Temos grandes alunos no Instituto que daqui a 3/4 anos serão Juristas de algum mérito em Cabo Verde e podem ascender a patamares elevados dentro da nossa magistratura ou noutros sectores como a advocacia a assessoria jurídica de empresas, etc, mas isso se se privilegiar o critério de mérito e não critérios burocráticos ou políticos como acontece actualmente. Resumindo: digo mais uma vez que o diagnóstico sobre o problema da Justiça no país está feito é preciso coragem política para se tomar as decisões correctas.
Expresso das Ilhas-Por Norberto Silva

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