terça-feira, 9 de março de 2010

CRÓNICA:RESSONANCIAS46-POR JORGE CARLOS FONSECA

Cultura, história, «os primeiros anos do pós-independência», as «anfractuosidades» esquecidas – a propósito de comemorações do 35.º aniversário da independência e da criação do MpD
1. Sejamos objectivos: não se faz mais cultura por haver um ministério da cultura, nem se faz menos cultura por não existir um tal ministério. Desde logo, porque o Estado não faz cultura, depois, porque podendo caber ao Estado promover, estimular, apoiar os agentes e instituições da cultura, essa função bem pode ser realizada satisfatoriamente com a inexistência de um departamento governamental cujo objecto essencial ou exclusivo seja a cultura, como pode um ministério da cultura ou um ministro da cultura fazer pouco pela coisa cultural. Temos exemplos de uma e outra verdade por cá e extramuros.
O certo, porém, é que proceder-se, numa remodelação governamental levada a cabo a um ano do final de mandato (de um segundo mandato), à extinção de um ministério vocacionada para a cultura (divulgação, promoção, desenvolvimento por diferentes vias, inclusivamente a chamada indústria cultural) e incluir o sector num mais vasto e abrangente departamento ligado ao ensino superior e à ciência, pode simbolizar um recuo na importância que se dá, que o Estado dá, àquele domínio da vida individual e colectiva. De uma perspectiva simbólica, das representações colectivas ou do cidadão comum, é o sinal de retrocesso que é visto. Retrato acentuado pelo facto de o ministro remodelado deixar de constar do elenco dos membros do governo.
De um mesmo ponto de vista, surgem como mais acarinhados pela governação o ensino superior ou o sector das comunidades emigradas, o que, a final, pode não se traduzir – como também se sabe por experiências outras – em resultados mais consistentes para aqueles segmentos da actividade governativa. Estamos, pois, num domínio de representações simbólicas a que também não fogem as próprias opções de estruturação do aparelho do estado ou da administração.
2. Voltando à cultura, a (pelo menos) aparência de uma sua menor valorização não rima com o discurso oficial de há anos para cá segundo o qual a afirmação do país se faz sobremaneira pela via da identidade cultural, que a cultura, no seu sentido mais global e, digamos, mais profano, pode ser factor de desenvolvimento a todos os níveis, incluindo o económico (o discurso sobre o «turismo cultural» presente em qualquer programa de governo nacional ou até municipal) ou, ainda, que nesta era de globalização, a afirmação e a defesa de valores culturais próprios (língua, música, literatura, dança, tradições orais, artes), a protecção das nossas pequenas coisas e dos nosso pequenos mundo constituiriam, afinal e aparentemente de forma paradoxal, meio adequado de sobrevivência do nosso modo de ser específico, no caso, a nossa caboverdianidade.
Não apenas o discurso e o jargão oficiais, mas igualmente a ideia de uma marca (vem à nossa mente um slogan recente, ouvido de vez em quando em instantes publicitários ou de divulgação de mensagem política) destas ilhas. Lembro-me de apresentação de Cabo Verde a plateias de estrangeiros, pouco conhecedores do país, em jeito de cómoda e redutora súmula: um pequeno país de ilhas, com gente simpática e acolhedora, belas praias, razoável literatura e muito boa música.
Ora bem, aquela (pelo menos) aparência de recuo no «olhar» governamental para a cultura surgiria ainda reforçada com um raciocínio singelo e facilmente transmissível: se, com poucos meios disponíveis e um pedaço mínimo do bolo orçamental, um ministério e um ministro (e seus funcionários e colaboradores) exclusivamente vocacionados para um domínio específico pouco poderiam fazer pelo bem que é a cultura, tendencialmente menos poderá estar em condições de fazer um ministério e uma ministra que se têm de ocupar com a política da ciência e a do ensino superior (este, galopante a nível interno, sem que isto signifique naturalmente ignorar ou relativizar os enormes problemas, desafios e equívocos de que padece e que atravessam o sector, designadamente no que toca à exigência de qualidade do ensino ministrado e a outras exigências naturais, como a da investigação e produção científicas e técnicas)… para além da cultura.
3. Naquele sentido lato, poderemos falar de história. Da história destas ilhas, diversificada no seus momentos marcantes, do povoamento à independência, desta à instauração da democracia e do estado de direito, materializada numa constituição escrita e de ruptura com o período anterior. Uma história que devemos assumir por inteiro precisamente por ser História e cujo conhecimento deve ser factor de coesão social e elemento decisivo da afirmação do que se apelida identidade nacional, independentemente de avaliações conjunturais e/ou de cariz político e ideológico. Cabo Verde não nasce com a independência nem com a democracia. È tão nosso, enquanto nação única - enquanto comunidade social historicamente modelada ao longo dos tempos e edifício culturalmente balizado por odisseias, referências, permutas e valores muitos – o comércio de escravos processado na Ribeira Grande ou a transferência da capital para a Praia de Santa Maria, como a luta pela independência nacional e seu percurso naturalmente pouco linear ou a transição democrática e a inauguração do constitucionalismo moderno.
4. Há dias pude assistir, como convidado, a uma palestra sobre «os primeiros anos da independência» proferida pelo actual Presidente da República, na condição, creio, de actor proeminente daquele período da nossa história. Legítima a pretensão de trazer à memória momentos, personagens, glórias, dificuldades, curiosidades de minúcia, resultados do pós-independência, numa ocasião em que se pretende comemorar o 35.º aniversário da independência nacional. Devemos confessar, no entanto, que seria de esperar que o relato e a avaliação, a par de aspectos menos conhecidos dos corredores da governação e do poder, da descrição de diálogos e retalhos da memória das negociações com as instâncias do poder com sede em Lisboa ou de cruciais momentos no exercício do poder revolucionário nacional (os «cofres vazios» encontrados; a venda da ajuda alimentar para o financiamento de projectos capazes de criar emprego; a «fidelidade» das autoridades administrativas locais; a criação das «milícias populares» e dos «tribunais de zona»; o aparecimento das «frentes de alta intensidade de mão-de-obra), não olvidassem … a história por inteiro (daquele período, naturalmente). Outros aspectos da história do pós-independência, que não podiam (não deviam) ser «esquecidos», sob pena, como o foi, de o evento se traduzir num avolumar de registos seleccionados e integrantes de uma linda, romântica, linear, de um só sentido, fotografia de um artista interessado em mostrar uma (ou apenas algumas, vá lá!) face de uma realidade mais vasta, complexa, sinuosa e… rica (por que não?!). Falar do pós-independência e não «tocar» na erosão e, depois, na queda da «unidade Guiné-Cabo Verde» e seu impacto na estrutura do poder em Cabo Verde, nos acontecimentos da Brava em Setembro de 1979 ou de Santo Antão em 1981 ou, ainda, no chamado «fenómeno fraccionista ou trotskista» em 1979 ou nos excessos da segurança nacional (a polícia política de então) ou nas denúncias de violações dos direitos fundamentais - independentemente da perspectiva, dos pontos de vista e das razões que pudessem ser carreados – é falar e avaliar (de forma redutora e, portanto, inexacta) apenas uma parcela da nossa história recente. Pensar em construir uma história, apagando momentos, factos e personagens que retiram (ou mitiguem) ao seu percurso pedaços do seu carácter «glorioso», generoso, «humanista» ou altruístico não serve decididamente [estaria tentado a dizer «as anfractuosidades« do edifício político de então] a causa da reconciliação com a história ou os propósitos de reforço da identidade pátria.
5. Porque falamos de história – e da história toda – assinalamos a criação do Movimento para a democracia (MpD) a 14 de Março de 1990. Não pela razão de nascimento de um partido, mais um partido (ainda que seja, em princípio, saudável e mereça registo o surgimento de partidos políticos) mas pelo tempo, pelo modo, pelas razões com que foi criado então. Tratava-se, sim, de um movimento político popular e social muito forte, erigido em força política partidária, e que historicamente consubstanciou os anseios, as aspirações e as reivindicações crescentes de uma grande maioria de cabo-verdianos á liberdade e à democracia. Enfim, um movimento político e social que acabou por traduzir a ideia – que nos parece acertada na perspectiva ainda da história – de que «… a sociedade civil cabo-verdiana postulava uma saída democrática para o momento em que se pusesse definitivamente em causa o sistema e o regime antigos…».
* Como nos lembramos de uma «pérola» normativa contida numa postura municipal da Praia: «É absolutamente proibido vestir-se e despir-se nas anfractuosidades das rochas». jcafa@yahoo.com/jcfonseca@cvtelecom.cv

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