quarta-feira, 26 de maio de 2010

O «Dia de África» e os nossos dias de/com África-Por Jorge Carlos Fonseca

1. Comemora-se hoje (terça-feira, dia em que redigimos esta crónica) o dia de África. Por comodidade e pressão do tempo, deixamos aos leitores pedaços do que, sobre o tema «África: os desafios da democracia, da paz e do desenvolvimento. O caso particular de Cabo Verde. Alguns tópicos de reflexão», escrevemos para uma conferência em Bissau no já distante Janeiro de 2004. Fazemo-lo por estarmos, hoje, mais de seis anos depois, no essencial, de acordo com o que afirmámos então:

2. «… Mas, quando se coloca o problema, crucial, de saber como ultrapassar esta espécie de círculo vicioso em que se traduz o equacionar da transição democrática e do desenvolvimento em África, as respostas parecem ainda pouco animadoras e, sobretudo, marcadas por traços muito pouco concludentes. Dizer-se que a democratização no chamado Terceiro Mundo, e, especialmente em África, é um processo de permanente re-invenção, de re-construção, de re-criação ; que a África precisa de um pensamento político novo, que não rejeite os valores universais da democracia, mas os utilize para enriquecer o seu processo de desenvolvimento ; que mais do que qualquer outra coisa, os africanos precisam de reconquistar a sua auto-confiança, única forma de a África se posicionar como igual face ao resto do mundo, inventando os seus próprios programas económicos e políticas de desenvolvimento; ou, ainda, de acordo com o citado estudo do Banco Mundial, o apelo a “um esforço sistemático para construir uma estrutura institucional pluralista”, bem como ao respeito pelo estado de direito e a protecção da liberdade de imprensa e os direitos humanos, após ter concluído que, citamos ainda, “subjacente à ladainha dos problemas de
  • Mário Matos, «Cultura democrática e os condicionalismos da sociedade cabo-verdiana», in De Mindelo para Cabo Verde – Convergência para a Solidariedade, dossier compilado por Carlos Araújo, Mindelo, 1995, 74.
  • Onésimo Silveira, “Sobre a democracia liberal no limiar do século XXI”, DeC nº 2, Praia, 1997, 44. Na mesma linha conclusiva, veja-se Mamadou Diouf, «Libéralisations politiques ou transitions démocratiques: Perspectives africaines», CODESRIA, 1998, 39 ss.
 desenvolvimento de África está a crise de governação” ; dizer-se isso tudo – sem deixar de se ter razão -poderá criar junto de quem quer respostas uma sensação de algum desconforto ou de insatisfação.
Insatisfação e desconforto que certamente eu aqui vos deixarei, na impossibilidade de vos fornecer soluções concretas, se é que elas existem. Apenas acrescentaria que a democratização é um processo sempre inacabado. A democratização é um processo contínuo no tempo, com a construção paciente e firme de instituições e práticas democráticas . As próprias experiências nos países do Norte onde foram primeiramente realizadas demonstram-no. Em África ela será certamente um processo paciente, demorado, com avanços e recuos, de compressão e assimilação de valores, comportamentos e referências aparentemente contraditórios. Um processo em que – permitam-nos que o “bichinho” das coisas do crime nos sugira um conceito atinente ao problema da colisão de direitos – terá sempre validade a ideia de concordância prática: entre a modernidade e a tradição; entre a afirmação da autonomia e as pressões da dependência; entre as exigências de crescimento económico e o combate à exclusão social e às desigualdades extremas; entre a liberdade e as tentações de seu condicionamento; entre o político e o cultural; entre a aritmética das tecnocracias e as exigências de salvação colectiva e da solidariedade social; entre o realismo e os preconceitos, as representações colectivas e, mesmo, os aparelhos da simbologia identitária muito arreigados, políticos, históricos, sociais e culturais. Mas também por isso, não haverá um processo ou modelo mas, previsivelmente, vários, como foi claramente acentuado também por Koudawo . Mas igualmente estamos convencidos de que ela só se fará, e
  • “Sub-Saharian Africa: From crisis to sustainable Growth. A long-term perspective study”, Washington D.C., 1989, 60.
  • Assim, por exemplo, a propósito da Guiné-Bissau, Elisabete Azevedo, «Colapso e Reconstrução na Guiné-Bissau», in Nova Cidadania, Número 16, 2003, 87.
  • Diz o autor que «... as interrogações sobre a preparação das sociedades africanas para a democracia pluralista... assim como os debates sobre o modelo da democracia em África ou as figuras da democracia à africana raramente escaparam aos prismas culturais e às grelhas de leitura ideológica…» e que os seus caracteres globalizantes «muitas vezes privaram-nos da luz específica decorrente das análises de caso» - Cabo Verde e Guiné-Bissau: Da democracia revolucionária à democracia liberal, INEP, Bissau, 2001,ob. cit., 156.
progressivamente, abandonando-se uma qualquer postura extremada de tipo culturalista ou historicista que rejeite a permuta, a evolução ou a crítica de valores e tradições, ou, num pólo contrário, de puro mimetismo cultural. Num processo em que certamente serão decisivos – como o foram, aliás, no fim dos anos oitenta – os movimentos sociais dos jovens desempregados, dos estudantes, professores, dos jornalistas, dos advogados, dos grupos de defesa dos direitos do Homem, das mulheres; um papel cada vez mais activo das elites africanas de regresso aos países de origem e a afirmação progressiva das sociedades civis. Num processo em que os modelos de organização do poder do Estado devam evitar as experiências de concentração ou mesmo pessoalização do poder que, em África, têm dado resultados desastrosos. Bastaria olhar para experiências africanas bem conhecidas – Mauritânia, Níger ou Zâmbia, sem esquecer alguns próximos de nós, como Angola, para não subvalorizarmos tal indicação, dizíamos no nosso prefácio à obra de Koudawo. Mas também deveremos dizê-lo: um processo de mudança que, para arrostar, com êxito, as resistências ditadas por fundos complexos, mormente de segmentos de certas elites africanas, o hábito, muito nosso, de permanente desculpabilização dos nossos erros, fraquezas, incapacidades, e de eterna e, às vezes, patética responsabilização dos outros (citando ainda Claude Ake, tal como o desenvolvimento, a democratização não é algo que alguém faça pelos outros. As pessoas devem faze-lo por si mesmas ou então nada acontece» ), e, sobretudo, as tentações de imposição de modelos muitas vezes desajustados das realidades ou inadequados aos objectivos políticos, económicos e sociais almejados , exige lideranças fortes e credíveis. Lideranças com legitimação - procedimental e material –

  • «muitas vezes privaram-nos da luz específica decorrente das análises de caso» - Cabo Verde e Guiné-Bissau: Da democracia revolucionária à democracia liberal, INEP, Bissau, 2001,ob. cit., 156.
  • In Journal of Democracy, 2001, 38.
  • Veja-se, sobre os condicionalismos impostos pelos países doadores à ajuda a países do Terceiro Mundo, e, particularmente, à Guiné-Bissau, Peter Karibe Mendy,«A emergência do pluralismo político na Guiné-Bissau», in Pluralismo político na Guiné-Bissau – uma transição em curso, coord. de Fafali Koudawo e Peter Karibe Mendy, Instituto Nacional de Estudos e Pesquisa, , Bissau, 1996, 48 ss.
democrática, que constituam condição de uma autêntica refundação de uma organização continental que possa funcionar com autoridade, eficácia e respeitabilidade interna e externa, capaz, nomeadamente, de legitimar a criação e a acção de órgãos de gestão de conflitos. Na verdade – e temos que o dizer – se, na África das lutas anticoloniais, se afirmou uma plêiade de grandes líderes, hoje, no pós-independência, e, ainda, nesta era da globalização e da onda democrática, o correspondente a individualidades como um N’Krumah, um Cabral, um Senghor, um Lumumba, (independentemente do juízo político e moral que se faça sobre o pensamento e a obra de cada um deles, de uma perspectiva actualista centrada em valores) traduz-se praticamente num vazio…».
3. Nós temos os nossos … dias de África ou com África. Entendemos que erro estratégico seria voltar as costas ao continente, sem que isso signifique que, face ao estado actual da grande maioria dos países africanos, não tenhamos necessidade, em cada momento, de definir prioridades de política externa, em atenção sobremaneira aos interesses concretos de Cabo Verde e dos cabo-verdianos e, não, a tentações ideológicas. Isso aconteceu designadamente com Abílio Duarte, enquanto principal responsável pela diplomacia nacional (ele foi o primeiro a falar de «diplomacia do desenvolvimento»), ou com o governo do MpD com o início da II República (apesar das críticas feitas de «deficit de política africana»).
Devemos, pois, por todas as razões, estar atentos ao que se passa no continente, estar com os dois pés, mas com clareza, coragem política e sentido de responsabilidade. O que também importa que, descomplexadamente, nos assumamos como somos – histórica, social e culturalmente modelados numa inegável especificidade identitária – e que a dimensão e o figurino de nossa participação e dos compromissos por que nos vamos regendo sejam sempre balizados pelos nossos interesses de Estado mas igualmente pelos valores e princípios com que, em definitivo, optámos por viver. Rasamente: não podemos deixar de, no contexto das nossas relações com os países africanos e com as instituições a que pertencemos, mostrar o nosso «rosto», a nossa «alma» e o nosso «destino» de país de democracia, de respeito pelos direitos fundamentais e pelo estado de direito. De ser ambiciosos, não valendo nunca qualquer critério de ser «o resultado o que menos interessa» ou competir para «perder por poucos».
ressonancias50
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