sábado, 26 de junho de 2010

BRASIL:100 dias para a sucessão de Lula

RIO DE JANEIRO-Diz o povo brasileiro que o Presidente Lula é um "macaco velho" da política, o que até é um elogio quando se ouve a definição para o seu antecessor, Fernando Henrique Cardoso, caracterizado como "pelintrão". Quando a 3 de Outubro terminar a era Lula, o desafio de governar uma das mais importantes economias emergentes vai ser entregue a um dos dois candidatos que se perfilam como principais: Dilma Rousseff e José Serra. A preferida dos jovens, das elites e dos mais esclarecidos politicamente é, no entanto, Marina Silva, que está com valores muito baixos nas sondagens apesar de, pela primeira vez, se ir medir no Brasil o que valem as redes sociais numa campanha. Há quem espere uma inversão como aconteceu com Obama. Uma situação que só se porá após o Mundial de futebol!...
Adda Di Guimarães inventou uma máquina de viajar no tempo que permite a quem passa pela Praça N. Sr.ª da Paz, no Rio de Janeiro, ver como era o Brasil no tempo em que o Presidente Lula ainda era um sindicalista furioso contra as grandes montadoras de carros do estado de São Paulo e como é o país que vai deixar de governar daqui a cem dias, quando for eleito o seu sucessor.
Maioritariamente feminino, o Brasil poderá ser pela primeira vez liderado por uma mulher, Dilma Rousseff, que já recebeu de Lula o ceptro para a corrida eleitoral, ou por Marina Silva, que se desligou há uns meses do partido do Governo, o PT, por convicções ecológicas. Homem mesmo, há o tradicional representante da classe política brasileira: José Serra. Destes três candidatos, Serra é o mais parecido com os protagonistas das fotografias que Adda tem expostas nas prateleiras da sua máquina do tempo, onde também existem imagens de mulheres, só que em trajes menos cerimoniosos, como é o caso da apresentadora Xuxa, quase nua nas centrais duma revista masculina.
A máquina que nos faz viajar no tempo é uma banca de revistas, jornais e memorabilia dos anos 80. Adda só vende no seu estabelecimento esses produtos que se salvaram de reciclagem ou do caixote do lixo mas que mostram como a história do país mudou nas últimas três décadas, sempre com Lula no horizonte político. Diz que tem clientes suficientes para ter a loja aberta numa das praças do bairro de Ipanema, porque as pessoas "são curiosas e identificam-se com o passado". Os que ali entram trazem esperanças de várias gerações, desde os jovens seduzidos por primeiras páginas que fazem lembrar a actualidade, aos mais velhos que ainda se recordam de ter ido comprar aquele número do pasquim, até aos decoradores das novelas de época que necessitam de jornais e revistas antigos para os cenários de filmagens.
Adda garante que o negócio não a faz ficar rica, mas era o seu sonho e por isso paga o preço. Desta vez, a campanha eleitoral não vai contar com ela, como aconteceu no passado: "Sou da geração de 68 e participei muito na vida política de então, porque era um momento importante." Não tem saudades dessa vida atribulada, nem da que se seguiu sob um regime militar ditatorial, mas mantém a sua "visão crítica" e diz-se "coerente com as próprias ideias". Sobre a governação de Lula, a sua opinião é taxativa: "Manteve uma política de alianças muito pragmáticas com quem lhe interessava." Acrescenta que, como favoreceu o desenvolvimento e melhorou em muito a qualidade de vida, "tem um apoio enorme das classes mais pobres" porque fez alguma obra na educação, saúde e segurança.
Quanto aos três candidatos, o seu voto iria para Marina Silva, porque "é honesta e possui uma visão ambiental importante". Quanto a José Serra, refere que "é bom mas não trabalha bem o sector da educação como se viu na prática em São Paulo", e sobre Dilma Rousseff conclui que é a "projecção dos mandatos de Lula". Mas, alerta, dificilmente irá votar em alguém porque o seu tempo político já passou: "Sou um cliché da minha geração." Ao contar a sua história, confirma que os seus tempos de rebeldia - os da "geração do desbunde" - não se enquadram num tempo em que o Brasil já não é um país-esperança, mas sim um protagonista da economia global e decidido a ter um papel importante na diplomacia mundial.
Nas capas das revistas e jornais que expõe, a "guerra"' é entre políticos nacionais, e hoje o Brasil intromete-se nos interesses dos políticos internacionais, como se verificou recentemente ao tentar viabilizar, com a Turquia, um avanço nas negociações com o Irão para este se tornar também uma potência nuclear. Nas próximas eleições presidenciais, a política internacional pouco interessará aos eleitores, mesmo se os comentaristas políticos façam extrapolações sobre a guerra com a Administração Bush porque o povo acha que o encontro de Lula e Ahmadinejad é um fait-divers. Importante para os brasileiros que sofreram os tempos pré-Lula é que a situação interna seja de desenvolvimento e que a vida melhore. Lula deu-lhes isso e a candidata sucessora segura essa mesma bandeira, pouco acrescentando de novidade à sua campanha.
Entre as principais razões que solidificam a intenção de voto no Brasil está a situação económica. Prova disso foi nas eleições de 1994 quando Lula estava a liderar mas o sucesso do Plano Real de Fernando Henrique Cardoso lhe permitiu a reeleição. Outra é a entrada em campo da Rede Globo, que consegue eleger ou destronar candidatos e governantes, mas como tem estado pró-Lula a realidade não deverá mudar face a Dilma Rousseff.
Por entre as ramagens das árvores que dão sombra à banca revivalista de Adda, se se procurar uma nesga entre o recorte dos prédios de um dos melhores bairros do Rio de Janeiro, descobre- -se um dos lugares mais tenebrosos para se viver: a Rocinha. Esta favela, que tem mais de 150 mil moradores, cumpre as duas normas "obrigatórias" para ter este estatuto, o de terem a melhor vista sobre a tal Cidade Maravilhosa e ser a prova da tese marxista de que é necessário haver mão-de-obra abundante, barata e perto de onde se realiza a mais-valia capitalista.
A paisagem que se observa das varandas e janelas mais altas da encosta onde se foi edificando a Rocinha dá para o luxuoso bairro de São Conrado, podendo dela ver-se distintamente um arranha-céus arquitectado por Óscar Niemeyer e as praias da Barra da Tijuca. Olhando para dentro do seu labirinto de ruas, o urbanismo perfeito do mítico arquitecto brasileiro é algo que não existe, nem as largas avenidas ou as superquadras de Brasília, mas muitas ruas e travessas onde o visitante se perde facilmente ou pode ser atropelado pelas mototáxis que levam à garupa os moradores até às suas casas. Não se sabe se os motociclistas aceleram mais devido às sensações eróticas provocadas pelo peito das mulatas contra as suas costas ou se é para fazerem mais corridas em menos horas - do que se tem a certeza é que os gangues da droga controlam a zona a 100%.
Conta a história que estes gangues surgiram da convivência com os revolucionários que tentavam deitar abaixo a ditadura militar. Juntos nas mesmas celas, os comunistas ensinavam-lhes tácticas de revolta e de guerrilha que, à falta de interesse político, eles aproveitaram para ganhar a vida. Até agora, esse espírito mantém-se bem vivo na Rocinha, enquanto o interesse pela política é diminuto mesmo que nas ruas principais se colem cartazes com o número a digitar na máquina de voto dos políticos que apelam ao voto dos pobres. O "mercado" de votos é grande nas favelas que existem no Rio de Janeiro, pois vivem ali 20% da população carioca, um local onde as promessas do Presidente Lula fizeram furor por oferecerem uma quase miragem. Era a "Fome Zero", era mais educação e mais segurança, propostas que a maioria muito deseja ver tornadas reais para poderem sorrir para o futuro.
A maioria da população que aí vive não faz do crime o modo de vencer na vida, estão ali porque é a única hipótese de estar perto do emprego e de o terem. Vêm de todo o Brasil e acabam nas "rocinhas" do Rio de Janeiro por não terem outra oportunidade. Por isso, enquanto se anda pela rua comercial que divide a meio a favela, pode ouvir-se uma dupla sertaneja a cantar os sucessos musicais do seu estado porque há muito morador com desejo de matar saudades do Ceará. Também se pode comprar de tudo, já que não há por ali uma ASAE: rapadura [doce de cana-de-açúcar]; caranguejos ainda vivos e tainha de Cabo Frio já amanhada, tudo posto sobre tampos de madeira; carnes para churrasco e de todo o género expostas sobre sacos de plástico; quiabos e outros produtos hortícolas dentro de baldes; doces cozinhados na hora em óleo requeimado; água retirada de cocos armazenados em pilhas sobre o chão, onde escorre não se sabe bem o quê. Curiosamente, a agência bancária que existe nesta ampla rua comercial nunca foi assaltada.
Leopoldino tem um espaço montado logo à entrada da rocinha e faz a filtragem aos de casa e aos visitantes. Não é difícil realizar essa triagem, nem tentar impingir um dos seus artigos a quem parece ser turista. O produto que mais lhe compram são T-shirts a dizer Rocinha e, por essa razão, tem uma gama variada e em todos os tamanhos, não vá aparecer algum americano gordo que lhe pague o dobro do que qualquer outro turista por este souvenir. Leopoldino vive na e da favela e sabe que é necessário conhecer algumas técnicas de marketing para despachar a mercadoria mais depressa. Quando o cliente aparece, fala logo um inglês razoável: "Vendo estas T-shirts para ganhar dinheiro para estudar à noite." Quando descobre que o interlocutor é português, o discurso vai directo ao coração: "O meu avô era português." E faz esta afirmação sem qualquer receio de que a cor da sua pele o desminta por muito dado à sacanagem que o seu antepassado fosse.
Patrícia também tenta apanhar os visitantes para vender ímanes para o frigorífico ou peças de vestuário de seda americana. Ao seu lado está a filha e uma amiga, ambas com oito anos, que brincam com um cão pequeno. Não as deixa afastar porque a insegurança é muita: "Antigamente, os bandidos não andavam tão armados, nem vendiam droga à vista das crianças." Aos 28 anos, o seu desejo é deixar a Rocinha para ir morar para um lugar mais pacífico, mas sabe que ainda falta vender muita peça para ter dinheiro para tal, mesmo não sendo muito exigente: "O que eu gostava mesmo era de mudar para a Favelinha. Lá não tem tráfico, não se paga taxa e é tudo mais barato."
Quando se pergunta a um dos moradores da Rocinha sobre as próximas eleições, as respostas desviam-se para o Mundial na África do Sul. Ainda é muito cedo para decidir se votam em Dilma, Marina ou Serra. Ou até se votam em algum destes nomes, apesar de já não poderem contestar o Governo como fizeram no tempo do voto em papel, ao "eleger" por maioria um macaco. O entusiasmo pelo futebol é tanto que a maior parte das ruas da Rocinha estão cobertas com folhas de papel verde e amarelo, num gosto popular que marca a diferença entre a cidade dos pobres e as vias largas que vão dar Fashion Mall de São Conrado ou ao campo de golfe que dá origem ao único espaço verde das redondezas.
Estes moradores ainda não estão preocupados com a liderança de Dilma Rousseff nas sondagens, com 40%, enquanto José Serra recolhe 35% das intenções de voto e Marina Silva apenas 9%. Esta é a preferida da vanguarda cultural brasileira, mas é a outra dupla que conta para a disputa eleitoral. Após o Mundial de futebol, a política vai aquecer e Lula voltará a estar no centro das atenções. É que José Serra necessita de encontrar razões para destronar a "governista" Dilma, e só trazendo os podres da administração Lula é que há roupa suja para mudar a orientação do voto na sucessora do Presidente.
Ailton tem 51 anos e conhece bem a história do Brasil nestas últimas décadas, principalmente a parte que diz respeito ao povo. Vende de tudo numa pequena caixa colocada sobre um banco numa esquina, e o artigo que tem na mão é bom para os turistas: um chapéu-de-chuva, ou de sol, com os principais destinos turísticos da cidade desenhados sobre o tecido. Para ele, a situação está melhor e só tem a agradecer ao Presidente Lula: "Com os outros, não dava para comprar nada, e agora até consegui adquirir um pedacinho de terra." O lugar onde construiu casa fica, mesmo assim, longe das ruas onde costuma assentar arraiais. Ainda não decidiu em quem vai votar mas, se houvesse mais Lula, decerto que votaria nele. O mesmo acontece com Marilza, que mora em Itaguaí. Enquanto amanha peixe, diz que Lula também é o preferido, e a razão é a mesma da maioria, que não tinha como sobreviver nos tempos do presidente intelectual, o sociólogo Fernando Henrique Cardoso.
Enquanto Marilza trata do peixe, três moradores das 70 famílias que vivem na ilha conversam na esplanada do restaurante. O mais velho contesta o fim da escola que existia na ilha: "Desviam o dinheiro para onde vive muita gente para comprar votos. Nós somos poucos para que se invista aqui." O único que fala mal de Lula é Mendes Brandão, um militante do velho Partido Trabalhista Brasileiro. Instalou um altifalante no centro do Rio de Janeiro e cada vez que desembarcam passageiros do ferry que liga o Rio a Niterói aumenta o tom de voz contra o Governo: "A nossa riqueza está a ser explorada pelos estrangeiros." Ninguém pára um segundo sequer para o ouvir criticar Lula.
Tal como o discurso do militante do PTB, também a influência da colónia portuguesa na política brasileira já pouco conta. No Rio de Janeiro, os portugueses já foram muitos e ricos, e a sua quantidade e qualidade tinha expressão política mas, actualmente, é quase zero, pois os lusodescendentes não valorizam a componente lusodescendente de tão aculturados que estão. Por outro lado, o domínio de grande parte da economia de serviços, outrora na mão dos portugueses que emigraram para o Brasil, cessou quase por inteiro. As padarias, as lanchonetes que serviam as refeições e os supermercados mudaram de mãos e só resta aos velhos portugas o regalo de verem na Casa de Trás-os- -Montes, e outras do género, ranchos da santa terrinha em digressão. Segundo o director do Real Gabinete Português de Leitura, António Gomes Costa, "a maioria dos portugueses nem são eleitores, o que só lhes permite uma influência indirecta na política". Ou seja, não será com o voto lusitano que o sucessor do Presidente Lula será escolhido.
DN.PT-por JOÃO CÉU E SILVA, no Rio de Janeiro

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