domingo, 28 de agosto de 2011

EXPRESSO DAS ILHAS ENTREVISTA COM JCF, PRESIDENTE DE CABO VERDE

O principal poder do Presidente é o de influenciar de forma positiva
O terceiro Presidente da II República é o Chefe de Estado eleito com o maior número de votos na história desta jovem nação. Jorge Carlos Fonseca diz que aceita as responsabilidades acrescidas, tanto que, no dia das eleições, dormiu bem, apesar do arrastar das comemorações. Nesta primeira entrevista depois do sufrágio, o futuro Presidente da República de Cabo Verde fala da vitória, de como vai implementar o seu Pacto com a Nação, da convivência com o governo e a oposição e sobre as relações externas.
Expresso das Ilhas - Como analisa o resultado. Acha que os cabo-verdianos votaram na despartidarização da Presidência da República?
Jorge Carlos Fonseca - Eu creio que uma das leituras, que já vinha de alguns estudos de opinião, é essa. Aliás, já na primeira volta, os meus votos e os do Dr. Aristides Lima representavam dois terços dos eleitores. Portanto, já haveria a ideia, na maior parte dos cabo-verdianos que seria bom para o país ter um Presidente que não fosse do mesmo partido do governo. Sobretudo num contexto em que o governo vai já na terceira maioria absoluta. A ideia de haver um Presidente de equilíbrio creio que terá tido alguma influência relevante na decisão de escolha do passado domingo.
Por falar do Dr. Aristides Lima, chegou a temer que uma união no seio do PAICV pudesse pôr em causa a sua vitória?
Não propriamente. Primeiro, nunca pensei que a totalidade dos votos dele se transferissem automaticamente para o meu adversário da segunda volta. A aritmética nunca vigora a cem por cento em operações políticas. Sempre tive a ideia que os votos do Dr. Aristides Lima eram de múltiplas origens. De todo o modo, os resultados da segunda volta vêm mostrar que eu ganhei também, porque potenciei milhares de abstencionistas a irem votar. Esses votos representam um número superior do que a soma dos de Aristides Lima e Manuel Inocêncio na primeira volta. São pormenores, mas quer dizer que, numa leitura académica, mesmo que todos os votos tivessem sido transferidos para Manuel Inocêncio eu ganharia na mesma. Acredito que houve muita gente que não votou na primeira volta e votou agora e que os votos de Aristides Lima se repartiram entre a minha candidatura, a de Manuel Inocêncio e a abstenção. Mas, só um estudo mais aprofundado poderá chegar a essas conclusões.
Outro dado curioso é que acaba por ser eleito Presidente da República com o maior número de votos de sempre. Isso aumenta a responsabilidade?
Para começar, é estimulante ter esses perto de cem mil votos. Mas, também é relevante ter ganho em oito das nove ilhas e em nove dos dez círculos eleitorais. E também a satisfação particular nalguns casos, como na ilha do Fogo, onde tenho 40 por cento da ilha, e em São Filipe, onde fiquei com uma votação muito próxima ao meu adversário.
Em relação à sua presidência. Na campanha falou em diálogo permanente. Como vai concretizar esta ideia?
O Presidente no nosso sistema é eleito pelos cidadãos. A própria candidatura é apresentada pelos cidadãos. Portanto, o Presidente não é de raiz partidária. Naturalmente, tem de lidar com os partidos políticos, tanto do governo como da oposição, e espero fazê-lo, principalmente quando for necessário encontrar soluções consensuais para questões essenciais para a vida do país. Mas, como disse na campanha, creio que os principais poderes do Presidente, no nosso sistema, são os de influenciar positivamente, politicamente e moralmente tanto na sociedade cabo-verdiana como junto dos poderes. E isso tem de ser feito em diálogo com toda a gente, nomeadamente com os agentes da sociedade. Por exemplo, hei-de dialogar sempre com os jovens e as suas organizações, com os empresários, com os sindicatos, com as universidades, com as organizações de mulheres. Portanto, ter sempre o feedback das expectativas e dos anseios dos cidadãos. É esse o tipo de diálogo que é importante entre o Presidente e as pessoas que o elegeram.
Será então um Presidente bastante interventivo?
Não quero utilizar essa expressão para não assustar ninguém. Não vou exorbitar os poderes constitucionais que tenho. Limitar-me-ei aos poderes que a Constituição me dá. Agora, esses poderes não são apenas os que as pessoas conhecem. Não é apenas o veto político, o poder de fiscalização da constitucionalidade das normas, de nomear os ministros e o Primeiro-Ministro, o Chefe do Estado-maior das Forças Armadas, os embaixadores, de demissão do governo. Esses são poderes importantes. Mas, os chamados poderes invisíveis, para mim, são-no ainda mais. O poder de diálogo, de ouvir, de dar opinião, de sugerir. Através disso, sobretudo, é que se pratica a influência política e moral da sociedade. Porque o Presidente deve liderar a nação cabo-verdiana. Não lidera o governo nem a oposição, longe disso. Tem de liderar a nação nas suas ambições, nos seus desígnios e nos seus valores, que são importantes para que o país se afirme.
Quando falava num presidente interventivo era no sentido de ser um presidente com uma opinião.
Sim, darei a minha opinião em áreas onde estou mais à vontade, como a segurança, a justiça, a juventude, o ensino. Portanto, se puder, penso que poderei ser uma mais-valia para potenciar a acção governativa. E estou convencido de que terei no governo um parceiro aberto para que, sempre que necessário, partilhemos ideias e soluções. O país é que terá a ganhar com isso.
E já tem ideias para os problemas que apontou?
Tenho, mas, naturalmente, a definição das políticas cabe ao governo. Agora, sempre que o governo precisar da minha opinião, dar-lha-ei. Sempre que achar que devo falar sobre outros assuntos, falarei.
Sempre que há eleições fala-se na compra de votos. Agora como Presidente vai fazer com que esta questão seja ultrapassada?
Hoje já ninguém o pode negar. Há demasiadas pessoas a falarem disso, desde os jornalistas, aos sociólogos, até aos políticos. Portanto, o fenómeno existe. Espero que não tenha uma dimensão irrazoável, mas é sempre bom atacar esse problema. E como Presidente da República trabalharei para que cada vez mais os cabo-verdianos vejam o voto como a expressão da sua dignidade pessoal. Aliás, eu acho que esta vitória é a da maturidade democrática e da dignidade.
Pacto com a Nação
Em relação ao pacto que assinou com a nação, durante o período de campanha, há cinco compromissos assumidos. Analisando-os um a um, e começando pela do Presidente junto das pessoas. Como vai ser realizado esse conceito?
Isso tem a ver com o estilo de actuação, com a minha maneira de ser, mas também com a visão que tenho do Presidente da República dentro do nosso sistema. Porque se um Presidente deve ajudar a resolver os problemas tem de os conhecer. Para os conhecer tem de estar junto dos cidadãos. Tem de os ouvir, saber o que pensam, e esse será o estilo de actuação que irei ter, dentro dos condicionalismos que o Presidente tem no exercício das suas funções. Mas, estarei sempre disponível. Por exemplo, sendo convidado, continuarei a fazer palestras e conferências nos municípios, nas universidades, ou em quaisquer outros locais. Farei encontros com jovens sempre que para tal for solicitado, ou por iniciativa minha. Estarei muito junto dos concelhos, das ilhas e da comunidade da diáspora. Tenho de ser porta-voz dos anseios das pessoas.
Disse também que será um Presidente atento ao país real. Isso quer dizer o quê?
Que serei um Presidente atento a problemas como o desemprego, a insegurança, a credibilização da justiça, a qualificação do nosso sistema de ensino, as assimetrias regionais, a discriminação política de câmaras municipais. Havendo problemas, tomarei posições sobre eles. Para isso, tenho de estar preocupado com os problemas do país, porque é para isso que somos eleitos, para resolver os problemas. No fundo, os cabo-verdianos querem bem-estar, menos pobreza, melhor qualidade de vida e combater as desigualdades sociais, que são inaceitáveis.
Referiu-se às autarquias, e já durante a campanha o fez várias vezes. Será um Presidente próximo do poder local?
Sim, porque tenho a ideia que o poder local democrático é um componente fundamental do Estado de direito democrático. Foi das maiores conquistas da nossa democracia. Creio que quanto mais o poder e as decisões estiverem próximos das populações, mais o país se desenvolve e mais benefícios têm os cidadãos. Portanto, serei um Presidente muito amigo do poder local, de todos os presidentes de câmara, e comigo haverá sempre a possibilidade de debater e aprofundar a ideia da descentralização. Sobretudo, batalharei para que em Cabo Verde haja igualdade de oportunidades entre as ilhas, os concelhos e as câmaras municipais.
Regressando ao pacto, garante que será um Presidente comprometido com as grandes causas da nação. Quais são essas causas?
A independência é um valor fundamental que devemos preservar. Devemos dignificar as comemorações da independência. Devemos dar o tratamento devido às pessoas que foram protagonistas da independência do país. Mas, há outra grande causa que é a democracia e a liberdade, porque temos de valorizar essas conquistas. São duas grandes causas nacionais. Há ainda a causa do desenvolvimento, que será a grande causa do futuro. Mas, essencialmente, temos de consolidar a nossa democracia. A cultura da democracia, a cultura da constituição, ainda têm de ser reforçadas e o Presidente tem aí um papel fundamental.
E qual será esse papel?
Fazer tudo para fortalecer a sociedade civil. Para que haja uma opinião pública mais forte no país. Isso é um trabalho muito paciente, que deve ser feito pelos partidos, pelas associações, pela sociedade, mas, o Presidente também pode fazer um trabalho decisivo nessa matéria.
Comprometeu-se muito também com a juventude. Está pronto para a cobrança?
Claro. Como digo, o governo é que define as políticas. Mas, a juventude nem é uma questão de opção, é quase de obrigação, porque dois terços dos cabo-verdianos têm menos de 30 anos. Temos um terço com menos de 22 anos. Pensar o país é pensar nos jovens. O país não avança, nem se desenvolve, se não encontrarmos soluções para os problemas dessa massa enorme de jovens no desemprego, sem perspectivas de vida, sem acesso ao ensino. Há ainda problemas sociais que têm de ser combatidos. Há o problema da droga, mas há também o problema do alcoolismo. Essa é uma chaga social, e terão de ser mobilizados todas as instâncias e meios para combatermos o fenómeno do alcoolismo, porque isso pode dar cabo dos nossos jovens e do nosso país. Essas são lutas que todos temos de travar, mas nas quais o Presidente também tem de estar envolvido.
E apesar de ser o governo que governa, tem a noção que há uma expectativa, podemos dizer grande, à volta da forma como irá usar o cargo.
Tenho a noção disso. Sobretudo porque foi uma vitória muito clara e as pessoas esperam muito do Presidente. Claro que há euforias e expectativas que, naturalmente, não poderão ser correspondidas claramente, porque há limites no papel do presidente. Mas, dentro desses condicionalismos, tudo irei fazer para corresponder às expectativas e não desmerecer a confiança dos cabo-verdianos.
Voltando ao pacto, e ao último item, a estabilidade institucional, como será a relação entre Presidente da República, governo e oposição?
Eu acho que isso foi mais um espantalho de campanha porque as regras do jogo são claras em Cabo Verde. Se o governo tem uma maioria que suporte o parlamento, não há nenhum problema. Nenhum presidente é louco para estar a demitir o governo, ou a dissolver o parlamento, quando existe esse cenário. Agora, é evidente que há um quadro constitucional definido. Se houver substâncias que levem a que o Presidente intervenha para casos de demissão ou de dissolução, e espero que não haja porque isso não é bom para o país, é claro que o Presidente tem de intervir. Até porque há situações que nem dependem do Presidente. Há situações em que, verificado certo pressuposto, o Presidente é obrigado a agir. Se um governo, por exemplo, apresenta uma moção de confiança que é reprovada o Presidente tem de demitir o governo. Ou se forem aprovadas duas moções de censura, também tem de o fazer. Há casos de dissolução quase obrigatória. Mas um Presidente pondera sempre. Nenhum Presidente arrisca demitir um governo, ou dissolver o parlamento, se tem a perspectiva que com novas eleições a mesma maioria torna a formar-se, porque aí é o Presidente que fica politicamente em causa.
MpD
Em que circunstâncias pondera usar o veto?
Nos casos em que isso se justifique do ponto de vista da Constituição e dos interesses do país. Se houver leis inconstitucionais, o Presidente pode não promulgar, pode requerer a fiscalização preventiva, a fiscalização sucessiva. E há também o veto político. Se houver casos que o justifiquem, porque o Presidente discorda do mérito da decisão do parlamento ou do governo, é um poder que tem e que usará. Mas, evidentemente, terá de os usar sempre com muita ponderação.
O facto da sua vitória também se dever ao MpD não poderá fazer com que se sinta refém da oposição?
Não. Nunca. Como sabe, trabalhei muitos meses para ter o apoio do MpD, que chegou muito depois do anúncio da minha candidatura. Eu não sou membro do partido, nem sou dirigente. É um apoio que me privilegiou, mas o próprio MpD sabe, e o seu presidente já o disse muitas vezes, que nunca serei refém de nenhum partido político. A partir do momento que fui eleito sou o Presidente de todos. Dos cabo-verdianos do PAICV, do MpD, da UCID, do PTS, dos muitos que não têm partido. E essa é a ideia que transmiti na campanha. O meu partido é Cabo Verde e esse deve ser o partido de um Presidente da República.
Relações externas
Sobre as relações externas. Este vai ser um mandato sempre de olho na crise internacional?
A crise existe. Vai continuar a ter os seus impactos, nomeadamente em Cabo Verde. Agora, a minha cooperação com o governo vai no sentido de concertação de esforços, de pontos de vista, para que enfrentemos a crise com sucesso e para que a possamos vencer sofrendo o mínimo impacto possível. O país também tem de procurar outros espaços de afirmação. Isso tem a ver com a diversificação das relações externas, tentando privilegiar as relações com os países emergentes, e consolidar as que já existem, de forma a potenciar as relações empresariais, o investimento directo, para que fintemos a crise. Também desse ponto de vista teremos de contar com muita imaginação, políticas lúcidas e com o contributo das comunidades cabo-verdianas no exterior.
O espaço da Comunidade de Países de Língua Portuguesa poderá ter um papel preponderante de entreajuda?
Nós temos relações com muita gente. Por exemplo, com a União europeia são muito fortes, assim como com os Estados Unidos da América. Agora, na CPLP podemos melhorar as relações com Angola e com o Brasil. Mas, temos também de dar outra perspectiva à CPLP. Penso que a podemos fortalecer e transformá-la numa verdadeira comunidade de povos que partilham uma língua e valores culturais. Creio que é possível fazer um pouco mais. Mas, para isso é preciso trabalhar, motivar, reforçar os laços que unem esses estados, e essencialmente criar condições para que os povos se sintam membros dessa comunidade.
Acha que isso ainda não acontece?
Acho que não. Tem havido muito trabalho feito, muitas relações entre os estados, os parlamentos, os governos, os advogados, os empresários, mas, talvez o cidadão comum não se sinta ainda membro de uma comunidade. Porque falta o que pode ser essencial como a circulação, por exemplo. É difícil, mas creio que não é impossível.
E em relação ao continente africano, onde a instabilidade é maior, qual será o seu posicionamento?
A política externa é definida pelo governo. Mas, entendo que posso dar a minha contribuição no quadro dos poderes que a Constituição me confere. Tenho até defendido que devemos ter uma política africana clara. Estar com os dois pés no continente, mantendo os nossos valores. Acho que devemos reforçar as relações com o continente africano, o que será positivo para o país. Mas, trabalhar também para que construamos uma África diferente. Que não seja uma África dos golpes de estado, das violações dos direitos humanos. Que seja uma África que dê aos seus filhos boas condições de vida.
Quando esteve nos Estados Unidos fez vários contactos por causa das questões dos expatriados cabo-verdianos. Essas conversações são para continuar, presumo.
Claro, fi-los enquanto candidato, enquanto Presidente vou tentar que esse problema, e outros, sejam resolvidos a bem dos cabo-verdianos.
Chegar à Presidência da República, depois de um percurso político de 43 anos, é o final perfeito?
Na vida não há perfeições. Nunca fui de planos. Fui fazendo as coisas. Estive na independência. Combati o regime de partido único. Ajudei a criar vários grupos da oposição. Ajudei a fundar o MpD. Ou seja, fui fazendo as coisas sem a preocupação de ter uma carreira. Nos últimos anos estava até ligado a outras coisas como o ensino superior ou aos livros. Nunca estive fora da política, mas estava de uma forma diferente. Portanto, não havia nenhum programa. Nunca pensei que tinha de ser Presidente. Aconteceu.
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