Entrevista publicada na Pública a 14 de Abril de 2002
Aristides Pereira: o descanso de um dos pais de África
Aos 79 anos, Aristides Pereira considera-se um homem feliz. Olha para trás e valeu a pena. Respira serenidade e transmite a calma de um homem realizado, cuja vida lhe deu muito mais do que aquilo que alguma vez imaginou. Por detrás de uns óculos grandes, o olhar risonho diz isto e muito mais. As gargalhadas que por vezes soltam nada tiram à sua natural distinção.
A voz, os gestos, o andar condizem com a grandeza e a confiança de quem acreditou no nascimento de um país que muitos consideravam não poder existir: Cabo Verde. O primeiro Presidente da República, em vez de Amílcar Cabral, acredita que África tem motivos para ter esperanças.
Foi um dos fundadores do PAIGC (Partido Africano da Independência da Guiné e Cabo Verde) de Amílcar Cabral, depois secretário-geral do partido e finalmente primeiro Presidente da República de Cabo Verde entre 1975 e 1991. Apesar da derrota pessoal, a alternância política, nas primeiras eleições pluralistas de Cabo Verde, é vista como uma etapa vitoriosa da democratização do seu país e do percurso do líder que conduziu o partido de forma que muitos não hesitam em qualificar de exemplar. Com Amílcar Cabral como "figura tutelar", mas sempre com o seu estilo próprio, diz que foi empurrado para a política pela força das circunstâncias; primeiro pela urgência de lutar contra a injustiça e a repressão das autoridades coloniais, mais tarde pelo dever de suceder ao líder histórico assassinado em 1973. Forçado pelo golpe de Estado na Guiné-Bissau, em 1980, a assumir o fim da união dos dois "países irmãos", Aristides Pereira manteve-se até 1991 secretário-geral de um partido, o PAICV, que passa então a representar apenas Cabo Verde. Hoje, a partir de um escritório da Cidade da Praia, continua a trabalhar em prol dos interesses dos cabo-verdianos junto dos organismos internacionais. Este ano vai publicar, primeiro em Cabo Verde, depois em Portugal, uma obra intitulada "Uma luta, um partido, dois países — Contribuição para o Património Histórico da Luta de Libertação Nacional da Guiné e Cabo Verde", sempre certo de que "nada foi como se Amílcar Cabral estivesse vivo". A publicação deste livro trouxe Aristides Pereira mais uma vez a Portugal, que conhece bem. A sua predilecção pelas "águas especiais das Termas dos Cucos, muito raras nos países da Europa", levam-no vezes suficientes à região de Torres Vedras para aí ter casa própria, um apartamento.
Quando despertou em si o interesse pela política?
Eu costumo dizer que fiz política sem ser político. O que me levou à política foi a situação de humilhação, de exploração do povo caboverdiano e as injustiças do sistema colonial. Na minha geração, começou a ganhar-se absoluta consciência da obrigação que tinham os cabo-verdianos de lutar contra essa situação de injustiça. Nunca sonhei, enquanto jovem, qualquer coisa que se parecesse com a política. Era qualquer coisa que estava fora dos meus parâmetros.
Com que idade começou a tomar consciência dessa situação?
O meu pai era um seminarista, formado no Seminário Liceu de São Nicolau, na altura o único estabelecimento secundário que existia em Cabo Verde e foi colocado como padre na Boavista apesar de ser natural da ilha de Santiago. Ele fazia parte de uma geração muito ligada à literatura, à cultura ocidental ou portuguesa. Nessa altura, não havia aviões, os barcos eram raros e os que havia eram à vela. Era assinante do "Diário de Notícias", e cada vez que chegava um barco, normalmente uma vez oor mês. sentava-se a ler os jornais todos de uma vez. Das coisas que me interessavam mais eram os jornais. Via o meu pai a ler e queria ler também.
Mas determinante para a minha tomada de 'consciência foi a ida com a minha irmã, 20 anos mais velha do que eu, para a vila onde o meu pai tinha uma das duas paróquias e onde mantinha um apartamento, apesar de viver na povoação onde nasci. Em 1928, era eu um garoto de 5 ou 6 anos, quando se deu a grande viragem provocada por Salazar e as mudanças em Portugal, altura em que aparecem deputados portugueses nas diversas ilhas. No prédio onde eu morava, instalou-se um major português com a mulher e as cinco filhas. A família engraçou com esse miúdo que era eu; o major gostava muito de falar comigo sobre a situação que se vivia em Portueal. Naauela altura estudávamos toda a geografia de Portugal, a Mãe Pátria. Mas custava-me a compreender essa Pátria, lá longe. Ele então falava muito sobre isso, das injustiças em Portugal. Fazia-me compreender, apesar de eu ser muito criança ainda, que também era contra o sistema colonial. A partir daí desenvolvese todo esse espírito.
Nessa idade, o que queria ser?
Depois de começar a estudar no liceu, a minha ideia era ser médico cirurgião. Mas foi completamente impossível. Na altura em que terminei o liceu, apareceram as bolsas de estudo. Mas duas apenas. Uma delas, aliás, foi utilizada por Amílcar Cabral. Pensei arranjar dinheiro para vir até Portugal mas depois como era uma família numerosa e eu era o 14° filho - o mais novo - fui para o liceu já um pouco tarde. O liceu só apareceu nos anos 30, e era preciso que os meus irmãos mais velhos fossem primeiro, antes de chegar a minha vez.
Nasceu na ilha da Boavista, mas frequentou o Liceu em São Vicente...
Sim, ia de barco à vela, nos "saluchos", para lá. Uma vez cheguei a demorar uma semana de Sáo Vicente para a Boavista, devido às calemas, época do ano em que não há vento.
Lamenta não ter seguido essa vocação de médico cirurgião?
Não, porque o percurso que depois tive compensa-me bastante. Sinto-me privilegiado. Tive a oportunidade de conhecer o sistema colonial "puro e duro". Engajar-me na luta contra esse mesmo sistema. E sair vitorioso dessa luta. Depois disso, conseguir edificar um país que, à partida, estava condenado, do ponto de vista da viabilidade económica. Na primeira visita das Nações Unidas, FMI e Banco Mundial a Cabo Verde, ainda durante o Governo de transição de 1975, a delegação concluiu que o país não tinha viabilidade. De maneira que, para nós, foi dos maiores desafios, partindo de uma situação abaixo do zero, conseguirmos edificar um Estado viável, com instituições que funcionam, e que, neste momento, avança no sentido político, económico e cívico. Sinto-me privilegiado, pois agora que estou liberto de toda essa actividade, vejo que valeu a pena. Sinto-me absolutamente realizado.
E essa é uma das razões por que nunca deixou de viver em Cabo Verde?
Com certeza. Era de esperar que nós, após 15 anos de poder, em que fizemos o país avançar para um sistema de pluralismo político, perdêssemos as eleições e muito naturalmente perdemos e eu perdi. Mas penso que isso só vem em nosso abono, pois mostrámos que o que queríamos era essa alternância e o desenvolvimento do espírito cívico. O poder é algo que se tem que utilizar em benefício da maioria, pelo menos dos mais desfavorecidos. Foi nessa perspectiva que escolhi não sair do país depois da derrota de 1991, ao contrário do que algumas pessoas previam que eu fizesse. E nesse sentido, sinto-me privilegiado, realizado. Na idade em que estou posso até dizer que sou um homem feliz.
Como é que esse adolescente que começou a sensibilizar-se para a política se tornou no sucessor de Amílcar Cabral?
Essa adolescência não foi nada fácil devido à própria época que nós vivíamos em Cabo Verde. Eu vivi de maneira consciente duas grandes crises das fomes, já adolescente e depois adulto, em que as pessoas morriam de fome. Refiro-me às duas grandes fomes de 1939/40 e mais tarde à de 1947/48. Sem chuva, não havia produção agrícola. Como a maioria da população era campesina, as pessoas morriam à fome, face a uma quase total indiferença do governo central. Apesar de haver alguns governadores, com uma certa formação, que chamavam a atenção para o que achavam não estar certo, o governo central não reagia nem dava os meios necessários para se fazer face à situação. Nessa altura, Cabo Verde tinha 240 mil habitantes e nas duas crises morreram cerca de 40 mil. Eu assisti a tudo isso e náo há duvida que foi um dos factores que mais me revoltaram.
E os outros?
O próprio sistema de dominação. Aproveitando-se dessa situação de desespero dos camponeses, o governo central tentava resolver o problema que tinha nas grandes plantações de São Tomé e Angola. Nessa altura, já existiam grandes interesses nessas duas colónias mas havia um problema de mão-de-obra, porque o nativo em São Tomé ou Angola não trabalhava facilmente por conta de outrem. Tinha o seu pedaço de terra, trabalhava, havia frutos silvestres e peixe à vontade. Não havia pressão, porque não havia fome. Então criaram-se os chamados Comissariados de recrutamento em Cabo Verde na altura das crises. Principalmente nas ilhas agrícolas de Santo Antão ou São Nicolau, onde as pessoas estavam desesperadas; aparecia então o comissário, a prometer trabalho e comida a quem fosse para São Tomé. As pessoas no seu desespero faziam um contrato miserável. Eram levadas para o porto de ligação na ilha de São Vicente e quando havia gente suficiente, as mil ou duas mil pessoas, aí concentradas, eram transportadas em barcos como se fossem gado, dentro dos porões de cargueiros, para Angola e São Tomé e Príncipe. Assisti a isto em São Vicente, em 1939. Assisti a isto na Cidade da Praia, em 1947/48. E ver tudo isto marcou-me imensamente. Era algo extremamente revoltante, ver a nossa gente.
O resto do população como vivia?
Também nós, a camada média da população, que conseguia comer, não tinha uma situação brilhante, porque Cabo Verde era a colónia onde os funcionários eram mais mal pagos. E a única saída de um estudante do liceu, num país que não produzia nada, era o funcionalismo. Mais uma vez, as autoridades coloniais aproveitavam-se dessa situação e pagavam muito pouco, o que dava lugar a que o funcionário cabo-verdiano procurasse sair, para Angola, Moçambique ou Guiné. Mesmo na Guiné-Bissau pagavam melhor. Fui para a Guiné ganhar mais de 1000 escudos quando em Cabo Verde ganhava 481 escudos. Cheguei a Bissau tinha 25 anos.
Quando conheceu Amílcar Cabral?
Conheci-o, antes disso, na Cidade da Praia, quando eu era funcionário público, e ele estava à espera da bolsa de estudo. Já nessa altura, ele era um jovem fora de série. Fazia programas subversivos, na emissora Rádio Clube fundada nessa altura por um grupo privado; de uma certa maneira, apadrinhada pelo próprio governador de Cabo Verde. Cabral propunha programas, que chamavam a atenção para muitas questões, principalmente a questão da fome, até ao dia em que lhe disseram que ele era subversivo.
E depois, como é que as coisas aconteceram?
O nosso reencontro deu-se na Guiné-Bissau, já depois de ele concluir o Curso de Agronomia e com as ideias bem claras, devido à experiência que adquirira em Portugal, com os contactos com nacionalistas de outras colónias portuguesas, como Mário de Andrade, Agostinho Neto, Marcelino dos Santos (este último seu companheiro de quarto em Lisboa). Chega então a Bissau à procura de gente que valesse a pena contactar, com a ideia de mobilizar as pessoas. E foi através de uma senhora portuguesa, comunista, vizinha da casa onde uma das minhas irmãs vivia, que nos conhecemos. A partir daí as minhas relações com o Amílcar ficaram mais ou menos estabelecidas, embora em condições muito especiais, devido à conjuntura que vivíamos. Só chegámos a relações de facto abertas, com trocas de impressões francas, depois de estarmos na Guiné-Conacri.
De entre o núcleo de fundadores do partido, como foi escolhido para suceder a Amílcar Cabral?
Houve uma série de circunstâncias do próprio desenvolvimento da luta que contribuíram para isso. Chegámos a um ponto em que náo havia possibilidade de uma acção política, na Guiné-Bissau, sem se ir parar à cadeia. Tínhamos de estar fora. Entretanto, com a independência da Guiné-Conacri, e face aos discursos engajados do Presidente Sékou Touré, que dizia que a Guiné-Conacri não seria livre enquanto houvesse uma parcela de África sob dominação colonial, Amílcar decide instalar-se em Conacri, com o secretariado do partido. O secretariado era ele, só.
Mais tarde, dos militantes do partido em Bissau, o primeiro a chegar a Conacri fui eu. Durante muito tempo, estivemos praticamente os dois sozinhos. Isso deu lugar a um conhecimento recíproco muito grande, ficando automaticamente muito próximos um do outro. Depois junta-se a nós Luís Cabral, o irmão, chamado a dar cobertura no Senegal, quando o presidente Senghor se queixou que não colocávamos nenhum responsável de alto nível no Senegal com quem as autoridades pudessem dialogar. Luís Cabral passa então para lá, embora permaneça junto à fronteira.
Assim, e durante todo este tempo, quem esteve permanentemente como sombra de Amílcar Cabral fui eu, o que veio a condicionar muita coisa. Conacri era o nosso primeiro centro, do ponto vista logístico, militar mas não só. E o facto de estar em Conacri, também me proporcionou desenvolver conhecimentos muito mais vastos e alargados de todo o pessoal engajado na luta. Chegou o dia de uma visita programada à China que Amílcar Cabral não podia fazer.
Então para satisfazer os chineses, que nos ajudaram bastante nessa altura, criámos o posto de secretário-geral adjunto. E foi com esse rótulo que fui para a China! Todas essas circunstâncias concorrem para que, quando se dá o desaparecimento físico de Cabral, eu apareça como seu sucessor, não como sucessor natural. Cabral para mim era insubstituível. Não há dúvida nenhuma também que era preciso que alguém assumisse essa direcção e todas as opiniões convergiam para a minha pessoa. O partido não podia marchar sem cabeça.
E sentiu sempre, ao longo do seu percurso como líder do PAIGC, presidente de Cabo Verde, e depois líder do PAICV, a presença tutelar de Amílcor Cabral?
Com certeza, embora eu tivesse sempre o cuidado de não o imitar. Procurei fazer o melhor possível dentro daquilo que eu conhecia do pensamento dele mas com um estilo próprio.
Alguma vez foi preso?
Nunca fui preso. Mas a repressão era extrema em Cabo Verde, onde não havia luta armada. Havia a intenção da libertação das ilhas, mas não era fácil, devido à situação geográfica. Os próprios militantes cabo-verdianos nem sempre compreendiam isso. Alguns deles chegaram a ser presos, maltratados, mas não chegavam a entender por que razão o PAIGC não desembarcava para libertar o arquipélago daquela situação. Estávamos preparados. No entanto, com a forte repressão da PIDE tornava-se impossível o desembarque, não havendo por isso condições para se declarar unilateralmente a independência, ao mesmo tempo que a Guiné-Bissau, em 1973.Na cerimónia da independência de Cabo Verde, a S de Julho de 1975, o Comandante Pedro Pires, escolhido por si para primeiro primeiro-ministro do país, e que chegou hoje a Presidente de Cabo Verde, elegeu a modéstia, a honestidade, e a firmeza de carácter como as suas três principais qualidades.
Considera estes atributos indispensáveis para o bom desenrolar do processo?
Havia um elemento fundamental. Primeiro procurar ter uma noção cada vez mais clara do homem com quem estávamos a lidar, o homem cabo-verdiano, e a partir daí agir em consequência. Segundo, ter muita paciência, tendo em conta a situação de onde partíamos. As dificuldades, com a seca, a fome, a constante incerteza marcam muito as pessoas. Era preciso ter tudo isso em conta. Por exemplo, o homem guineense é um homem que tem toda uma história, atrás dele, que o sistema colonial cortou. Mas o cabo-verdiano não. Só agora é que está a fazer a sua história.
Fala de paciência e confiança, perseverança e segurança ao mesmo tempo...
Sim, essa confiança que nos habituámos a ter. Um dos grandes princípios que aprendemos com Amílcar Cabral foi que lidando com homens, o importante era confiar. Ele confiou. Mas foi traído, assassinado. Quem confia arrisca-se a ser traído. Mas é preciso também não se deixar intimidar por isso. Se se quer fazer algo, é preciso confiar.
No momento em que fez o seu primeiro discurso, à meia-noite desse dia 5 de Julho de 1975, o que pensou? Alguma vez se sentiu apreensivo?
Com certeza. Nessa altura eu estava bem consciente da situação. Houve até na nossa equipa quem falasse de pânico. Havia gente, em pânico, que se dizia "conseguimos, mas agora como é que isto vai marchar?". Nessa altura, todos os que eram contra a independência, pessoas ligadas ao sistema colonial, que sentiam que os seus interesses iam ser lesados, faziam uma propaganda terrível, difundindo a ideia de que ia ser um desastre. Houve mesmo cabo-verdianos que não davam nem seis meses a Cabo Verde. Diziam que não tínhamos condições para ser dependentes, quanto mais independentes! Havia de facto nessa altura um clima derrotista, que chegava a ser anti-patriótico. Mas foi isso que nos deu ainda mais força, para mostrar a essa gente que não era assim.
Depois da morte de Amílcar Cabral, sentiu também alguma insegurança?
Com certeza.
Teve medo?
Tenho que confessar que sim. Porque Cabral era um homem fora de série. Conceber que eu ia sentar-me no lugar dele! Mas face à necessidade que havia e ao consenso que foi gerado em torno da minha pessoa, senti que tinha o dever de assumir aquela responsabilidade, embora com todas as minhas limitações e sabendo de antemão que nada seria como se Cabral estivesse vivo.
E medo pela sua própria vida?
Isso não me chegou a intimidar. Pelo contrário. Nesta altura senti-me como que inebriado pela oportunidade de honrar a memória de Cabral e de fazer tudo para que os objectivos por ele fixados fossem alcançados.
De que forma a injustiça e a repressão das autoridades coloniais influenciaram o seu relacionamento com Portugal?
Faz parte dos próprios princípios do PAIGC nunca confundir colonialismo e povo português. Sempre nos habituámos a separar essas duas coisas. O nosso combate não era contra o povo português, mas sim contra esse regime de humilhação, exploração e repressão; até porque o povo português também estava subordinado ao sistema de repressão.Dos princípios defendidos por Amílcar Cabral, houve algo que não foi possível levar até ao fim: a união entre a Guiné e Cabo Verde, com o golpe de estado de 1980 em Bissau no qual Nino Vieira derrubou Luís Cabral. Outro dos princípios muito importantes na formação do partido era o não alinhamento visto como única opção viável para Cabo Verde.
Essa linha mantém-se?
Mantém-se, apesar de ter sido mais notório no contexto de então, com capitalismo de um lado e comunismo do outro. Principalmente nessa altura era fundamental traçar-se uma linha. Hoje continua, apesar dessa bipolarização ter desaparecido. Mas não vamos em Cabo Verde condicionar o nosso comportamento a ajudas externas. Tal seria contra o princípio de soberania que deve garantir a dignidade de um povo.
Quando era Presidente, foi difícil manter essa soberania?
Com certeza, porque na altura, dizia-se que uma das únicas riquezas de Cabo Verde era a sua posição geo-estratégica. Com a guerra fria, o arquipélago era muito disputado quer pela NATO quer pelo Pacto de Varsóvia, para a criação de bases no Atlântico. E Cabo Verde não alinhou com nenhum lado. Para um país como o nosso, era um caminho a impor para garantir a própria dignidade de Cabo Verde que não queria voltar a ser uma colónia.
Foi graças ao partido que liderava que se conseguiu resistir a essas pressões?
Foi graças à "equipa"...
Havia pressões internas para se deixar ir pelo caminho de eventuais alianças?
Era o caminho fácil a seguir.
O que mudou em Cabo Verde, ao longo destes anos?
Apesar das dificuldades económicas, essencialmente estruturais e naturais, avançou-se bastante. As pessoas vivem melhor. Nunca voltou a haver fome desde a independência.
Mas alguma coisa o preocupa?
Com a falta de recursos no país, só há razoes para se estar em permanência preocupado. É uma situação frágil principalmente do ponto de vista económico, que fragiliza tudo o resto. De modo que os dirigentes de Cabo Verde, sejam eles quais forem, de que partido forem, têm de ser pessoas extremamente prudentes, cautelosas, vigilantes. Em Cabo Verde, é preciso muito rigor, muita vigilância. E às vezes, esse rigor, essa vigilância podem falhar.
Preocupa-o a dependência que pode haver, por exemplo, do sector do Turismo?
O turismo só é vantajoso quando gera forças internas de produção. Se o turismo é algo que gera emprego, não só o emprego do empregado do hotel, mas tudo, desde a alimentação ao artesanato, está bem. Mas neste momento, quase tudo o que o turista consome em Cabo Verde é importado. Nesse caso, o turismo não tem o reflexo que seria de esperar.
Como vê o regresso do PAICV ao poder nas eleições de 2001?
É algo extremamente benéfico. Vê-se que há uma tomada de consciência das massas. Relativamente aos dois mandatos do MPD desde 1991, as pessoas tinham consciência que, da mesma maneira que os tinham posto Iá, podiam tirá-los de lá. A partir do momento em que o povo tem essa consciência, este principio de alternância é salutar. Sabendo que não pode ficar eternamente no poder, o partido que governa sente que deve fazer as coisas da melhor forma possível.
O PAIGC pode ser apontado para as gerações políticas africanas como um modelo?
Muitos consideram que o PAIGC foi o mais conhecido e considerado dos movimentos de libertação africanos. Não é por acaso. Amílcar Cabral concebeu e dirigiu essa luta de forma exemplar. E hoje é amplamente reconhecido que a perda de Cabral não foi uma perda só para Cabo Verde e para a Guiné. Foi uma perda para toda a África, que hoje vive uma crise de liderança. Se há hoje tanta confusão no continente africano, é por não haver um líder que esteja acima de todos, que seja reconhecido pêlos outros. Chegou a haver no principio, como por exemplo Nkrumah do Gana, Sékou Touré da Guiné Conacri, Nyerere da Tanzânia, ou Nasser do Egipto. Como Cabral, tomaram uma dimensão africana. Atingindo ele essa dimensão, situou o PAIGC ao nível do partido que levou a cabo a luta mais exemplar de África.
Não desejou continuar na política mesmo depois de deixar de ser presidente de Cabo Verde, em 1991?
Diz-se de uma pessoa que nasce ou não animal político. Ora eu não nasci animal político. Eu nasci um homem comum. Foram as circunstâncias que levaram a que eu tivesse um papel político importante, e estando eu nessa situação, esforcei-me para dar o melhor de mim. Mas não quer dizer que estivesse imbuído dessa intuição política.
Essa falta de líderes africanos a que se refere está directamente ligada à crise que vive o continente?
Com certeza. Há um historiador que diz que a África está à espera que apareça um homem com a envergadura, a estatura de Cabral. Havendo um líder que seja respeitado e seguido por todos os outros, a situação poderá ser diferente. Porque há toda uma / consciência hoje generalizada em África, a nível dos chefes de Estado, em como África não tem futuro sem a união africana. Mas é preciso um elemento aglutinador que reúna o consenso. Eu acredito que as coisas poderão marchar. Penso que esse líder vai aparecer.
Há então motivos para ter esperanças?
Com certeza. Não tenho dúvidas que um conf tinente como África volte a dar, como já deu, homens como Cabral, Nasser, Nkrumah ou Sékou Touré. Apesar de todas as coisas que dizem deste último, não há dúvida nenhuma que ele teve um papel extraordinário: só o "Não" do Sékou Touré ao Charles De Gaulle transformou todo o plano francês que havia para as colónias francesas. Ora, só isso foi uma contribuição extraordinária! Homens como estes desapareceram, mas vão reaparecer, vai aparecer uma outra vaga, vai aparecer outra gente.
http://www.publico.pt/Mundo/aristides-pereira-o-descanso-de-um-dos-pais-de-africa_1513137?p=1
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