segunda-feira, 15 de novembro de 2010

DROGA:Presa revela que ajudou traficante depois que ele sequestrou seu filho

O Fantástico mostra a realidade das chamadas “mulas do tráfico”. Elas relatam quais motivos as levaram a participar do crime.
Veja as histórias de mulheres de várias partes do mundo que acabaram presas no Brasil depois de serem recrutadas pelo tráfico internacional de drogas. Na reportagem de Eduardo Faustini, você vê os relatos dessas mulheres, que nunca tinham cometido um crime, e o drama das famílias que elas deixaram a milhares de quilômetros do Brasil.
Mulheres foram presas no aeroporto de fortaleza. São as chamadas mulas do tráfico.
“A gente vê as pessoas se arrumando, indo esperar seus familiares, e nós tendo a certeza que não vamos receber nenhuma visita”, conta Mafalda Correia Pires, que está em Portugal.
O presídio feminino Auri Moura Costa, na Região Metropolitana de Fortaleza, abriga 420 mulheres. Ao todo, 49 são estrangeiras.
Elas foram presas quando tentavam sair do Brasil levando drogas. Este ano, a Organização das Nações Unidas (ONU) apontou o Brasil como o principal corredor de cocaína do mundo. Uma das rotas mais usadas pelas quadrilhas começa na Colômbia, passa por São Paulo, Nordeste do Brasil, África Ocidental e termina na Europa.
Vinte mulheres da cadeia são de Guiné Bissau e de Cabo Verde, na África. Representam quase a metade das estrangeiras presas. “Quando eu sair daqui, eu espero nem um dia me iludir de novo com dinheiro”, afirma Abdezela Pereira Duarte, presa de Guiné-Bissau.
Durante um mês, o Fantástico investigou essa rota do tráfico. Descobrimos como essas mulheres são aliciadas, o drama das famílias que vivem no exterior e a força-tarefa criada para combater esse crime, que não respeita fronteiras.
Na única penitenciária feminina do Ceará, as regras são rígidas. Não há registros recentes de fugas ou rebeliões. “A maior dificuldade realmente é a questão da língua, que a gente tenta inserir através da escola e também a distância da família”, diz a diretora do presídio, Socorro Matias.
Mulheres que foram presas no aeroporto de Fortaleza são as chamadas mulas do tráfico.
“Essas pessoas, muitas vezes, são movidas pela emoção. Elas se apaixonam por um homem. Por esse homem, ela faz tudo, se sujeita até a traficar droga. Muitas vezes, ela é coagida. Ganha um trocado ali para usar seu corpo, para usar sua mala”, revela José Bento Laurindo de Araújo, coordenador do sistema penal do Ceará.
“Se o crime foi cometido em território brasileiro, a pena será cumprida em território brasileiro”, esclarece o advogado Auricélio Paiva.
Mandy Veit é da Alemanha. Condenada a nove anos, diz que entrou no crime, porque queria comprar uma casa para morar com o filho. “Eu queria voltar no passado, para fazer coisas melhores. Queria ser uma pessoa melhor”, revela.
A cada 15 dias, as estrangeiras podem usar o telefone da cadeia. Mandy liga para a família, no dia do aniversário da mãe.
O Fantástico foi à casa de Mandy, que fica em uma área rural da Alemanha, perto da fronteira com a República Tcheca. Encontramos os pais e o filho dela, de 12 anos. Eles viram o vídeo gravado na cadeia. “Espero que você saia logo daí”, disse a mãe de Mandy. “Nós te perdoamos, não importa o que tenha acontecido”, falou o pai, que é engenheiro. “Aquele amor que só uma família dá pra você falta muito aqui. Falta demais”, reconhece Mandy.
Mandy é exceção na cadeia. Além de ter nascido em um país rico, elas estava na faculdade: fazia fisioterapia.
Já o que a maioria relata é um passado difícil. “Eu preciso de dinheiro para ajudar a minha filha que está doente, que tem problema de rim”, conta Abdizela Pereira Duarte, presa de Guiné Bissau.
Muita miséria e africanas que falam português. Segundo a polícia, isso explica por que as quadrilhas internacionais têm aliciado mulheres de Cabo Verde e de Guiné Bissau. Além disso, o aeroporto de Fortaleza é considerado mais vulnerável que os de São Paulo e do Rio de Janeiro.
Em abril, Vitalina, de 26 anos, e Dulce, de 28 anos, saíram de Cabo Verde e chegaram à capital paulista. Elas receberam de um traficante cerca de oito quilos de cocaína. De São Paulo, as duas pegaram um voo para Fortaleza, onde ocorreu a prisão. Vitalina e Dulce receberiam o equivalente a R$ 10 mil cada uma. “É a dívida, situação de casa. Eu queria ajudar o meu marido de alguma forma. Só que deu tudo errado”, lamenta Vitalina Fernandes Correia.
Elas vão ficar quatro anos na cadeia. “Nós, mulas, não ganhamos. Quem ganha é o traficante mesmo. O que nós ganhamos é sofrimento, dor, vergonha da família”, confessa Dulce Helena dos Santos, presa de Cabo Verde.
Eloni Kintasambe, 25 anos, é de Guiné Bissau. Segundo a polícia, ela tentava levar cinco quilos de cocaína dentro de canecas de alumínio. Ela é uma das poucas estrangeiras que recebem visita na cadeia. O irmão dela se formou em enfermagem no Ceará. “Esse momento não é momento de críticas, não é momento de abandono, esse é momento de apoio”, acredita Isaac Sambé.
Em dois meses, Eloni também terminaria o curso de enfermagem. “Eu estava um ano e dez meses sem ver a minha família. Eu estava viajando para encontrar eles e matar a saudade. Só que a minha conhecida pediu pra levar encomenda para a mãe dela. A encomenda era droga. Na verdade, eu não sei dessa droga”, conta.
Pedimos a várias dessas presas que gravassem mensagens para a família. Depois, o repórter Eduardo Faustini e o repórter cinematográfico Alberto Fernandez foram para a África investigar todas essas histórias.
A nossa equipe começa a busca por informações em Cabo Verde. O país deixou de ser colônia portuguesa em 1975. Tem cerca de 400 mil habitantes que vivem da agricultura e da pesca de atum.
No fim de outubro, os porteiros do cais estão em greve por melhores salários. Em Cabo Verde, é difícil encontrar quem ganhe mais de R$ 150 por mês. E, entre os desempregados, a maioria tem menos de 25 anos.
“Quando eles chegam em casa, o que eles vão fazer? Entrar no vício de bebida e drogas. Falta do trabalho”, explica um homem.
Em uma casa, moram a mãe, a irmã e a filha de Soraya Clarete. Ela está presa no Ceará, por transportar três quilos de cocaína. “A Soraia estava muito à procura de trabalho, mas ela não encontrou por aqui”, declara uma das parentes dela.
A família conta que Soraya nunca tinha se envolvido em crimes até conhecer um traficante da Nigéria, país africano onde, segundo as autoridades internacionais, ficam os chefes de várias quadrilhas. Soraya receberia o equivalente a R$ 3 mil para levar as drogas. “É doloroso ver uma coisa assim acontecer, com uma pessoa que você gosta. A minha mãe não fala nada, mas ela chora todas as noites”, revela uma das parentes da Soraya.
A mãe grava uma mensagem para Soraia em crioulo, a língua nativa de Cabo Verde. “Ela falou que me ama muito, que ela gosta de mim. Eu estou sentindo muito, porque eu vi que a minha mãe está diferente. Ela não era assim. A minha mãe era mais forte. Quando eu estou aqui, ela fica sentindo muito”, diz Soraya.
Em Cabo Verde, encontramos também as famílias de Vitalina e de Dulce, presas com oito quilos de droga no aeroporto de Fortaleza. A emoção é grande. “Eu tenho vergonha do meu filho. Esse não é o futuro que eu queria”, lamenta Dulce.
“Quando ela chegar em casa, eu vou falar para ela nunca mais fazer o que ela fez”, diz uma das parentes de Dulce. “Quando vir para a sua casa, ela me encontra aqui ou vivo ou morto”, um homem declara para a detenta. “Eu quero mandar muito cumprimento para a minha mãe. Mãe, eu perdoo você”, diz o filho de Dulce.
Há 14 anos, o marido de Vitalina, Sany Fernandes Correia, trabalha como garçom em um dos restaurantes mais tradicionais de Cabo Verde. O casal tem dois filhos. “Os meninos não dormem em casa, porque eu trabalho à noite. É muito problema”, admite.
“Não podia dar ouvidos a essas pessoas, só porque ela quer ter uma boa casa, um carro, vida boa. Agora, imagina a vida boa. Está presa!”, critica Mandina Luiza Correa, irmã de Vitalina.
“Amor da minha vida, a única coisa que eu quero dizer é força e coragem. Te amo muito. Um beijo”, diz Sany.
“Que ele me perdoasse por tudo que eu fiz, que eu vou sair daqui outra mulher, que eu amo ele muito e os meus filhos e a minha família”, confessa Vitalina.
A droga que Vitalina e Dulce tentavam trazer do Brasil iria para a Europa. A estimativa é que as quadrilhas distribuam entre 200 e 300 toneladas de cocaína por ano naquele continente.
Em 2009, das 822 apreensões na Europa, 122 foram em voos que saíram da África Ocidental. Nossa equipe partiu de Cabo Verde e foi para Guiné-Bissau, que é o país dessa região do mundo que mais preocupa a ONU. São cerca de 1,5 milhão. O país se tornou independente de Portugal em 1974. Em 1999, enfrentou uma guerra civil. Sem saneamento básico, sem indústria e sem emprego, Guiné-Bissau atraiu o interesse das quadrilhas.
Encontramos os irmãos de uma das mulheres presas no Brasil, passando fome e sede. A irmã dele é Abdezela Duarte, condenada a cinco anos e meio de cadeia. Ela conta que iria transportar a droga, porque o traficante prometeu bancar um transplante de rim para a filha doente. “Se eu pudesse falar com ela, eu pediria perdão e fazia ela entender o motivo do meu abandono”, deseja Abdezela.
“Eu sinto muita falta dela. Te amo muito”, emociona-se o irmão.
A filha de Abdezela, de 6 anos, não está em casa. Depois da prisão da mãe, a criança foi levada pelo pai. “Está doendo no fundo do meu coração, sabendo que eu não posso estar lá para ajudar, porque, por mais pobre que eu seja, mas nunca apagou o fogão da minha casa. Eu nunca comi na minha casa o que a minha irmã está comendo hoje”, ressalta Abdezela.
Em Guiné-Bissau, grande parte do comércio é feito no meio da rua. Não há agências bancárias. Os estrangeiros que precisam trocar dinheiro são disputados quase no tapa.
Um guarda exige propina para permitir a gravação de imagens. “Fizemos uma análise e vê-se que é a corrupção que está na base da entrada de droga no nosso país”, esclarece Lucinda Barbosa Alcarien, diretora da polícia de Guiné Bissau.
Outro exemplo do caos. Sem ser incomodados, nossos repórteres entram na maior emissora de TV do país, que pertence ao governo de Guiné-Bissau.
Dentro, a surpresa. Os corredores, a redação de jornalismo, os equipamentos: está tudo abandonado. Há mais de três meses, as transmissões pararam. Não há fornecimento regular de energia elétrica. “Há mais de 30 anos, estamos nessa caminhada. Não há luz, não há água. É mesmo difícil alguém fazer previsão sobre o futuro dessa terra”, declarou o contabilista Samuel da Rosa.
Luz em casa, a qualquer hora, só com gerador a diesel. Mas, se as pessoas compram o combustível, falta dinheiro até para a comida. E olha que o chefe da família tem um bom emprego. Antônio Sambé, pai de Eloni, trabalha há 27 anos no Ministério das Finanças de Guiné-Bissau. “Tudo escuro, como vocês estão a ver, tudo escuro. E não sei até quando”, conta.
Eloni Sambé é acusada de tentar transportar cinco quilos de cocaína dentro de canecas. No aparelho de DVD, movido à pilha, mostramos as imagens da moça presa no Brasil, a mais de três mil quilômetros de distância.
O pai acredita na inocência da filha. “Nós não vivemos de drogas. Vocês podem ver. A minha casa é modesta. Que ela tenha coragem. Fé em Deus, porque o Deus que nós servimos é poderoso”, aponta Antônio Sambé.
“Meu pai deve estar arrasado mesmo, porque ele tem problema de pressão. Ele é doente, mas ele sempre foi um homem forte”, afirma Eloni.
Em 2007, a ONU criou uma força-tarefa pra combater o tráfico de drogas no mundo. O chefe do escritório local das Nações Unidas diz que era comum ver traficantes colombianos desfilando em carros avaliados em mais de R$ 500 milhões. Os criminosos também moravam em mansões e conviviam com políticos, governantes e militares.
“Eles iam jantar nos restaurantes, gastavam dinheiro em quantias exorbitantes. Sabia-se que forças governamentais e militares estavam implicadas no tráfico de drogas”, explica Manuel Pereira, chefe do Escritório Contra a Droga e o Crime da ONU.
Em abril deste ano, o Departamento do Tesouro dos Estados Unidos fez uma acusação grave: disse que são traficantes o chefe do Estado-Maior da Armada de Guiné-Bissau, o contra-almirante Bubo na Tchuto e o chefe do Estado-Maior da Força Aérea, Ibraima Papa.
Em 2008, Bubo na Tchuto foi acusado de ficar com cerca de 600 quilos de cocaína vindos da Venezuela. Até hoje, o jato está apreendido no aeroporto de Guiné-Bissau.
Procurado pelo Fantástico, o contra-almirante Bubo na Tchuto não quis gravar entrevista. “Gerou-se um sentimento de impunidade, da existência de impunidade aqui em Guiné-Bissau”, afirma Manuel Pereira.
Nessa guerra contra o tráfico, está sendo construída a primeira academia de polícia do país. A obra tem apoio do Brasil. “Precisamos das formações específicas, especializadas, que é para realmente poder permitir um combate sem tréguas dos narcotraficantes”, diz Lucinda Barbosa Alcarien, diretora da polícia de Guiné Bissau.
De volta ao Brasil, com as mensagens gravadas na África, entramos mais uma vez no presídio cearense. Entre todos os casos, um chama a atenção pelo grau de violência. Lucília dos Santos saiu de Cabo Verde e foi presa com dois quilos de cocaína.
Para a família, ela teria se iludido com a proposta de dinheiro fácil. “Quando eu recebi a notícia que ela estava presa, a minha cabeça faltou explodir. Como é que eu vou buscar trabalho, com dois filhos?”, indaga Alvarino Borges, marido de Lucília.
Depois de ver o sofrimento dos parentes, Lucília fez uma revelação. Segundo ela, um traficante sequestrou um dos seus filhos e a obrigou a pegar a droga no Brasil. “ele disse: ‘eu tenho o que dói em você mais’. Que é meu filho. Falei para ele: ‘solta o meu filho, que eu faço o que você quer’”, diz a detenta. O menino, de 4 anos, está bem. Todas essas histórias misturam violência, miséria e arrependimento. A maioria das presas reconhece: nada justifica o crime grave que cometeram. Que sirva de lição, dizem elas.
“A única coisa que eu tenho que pedir é desculpa e perdão”, disse Lucília dos Santos. “No meu futuro, eu queria trabalhar, cuidar do meu filho. Esse mundo eu não quero mais”, planeja Dulce. “Quem sabe Deus me colocou aqui para aprender a dar valor à vida”, ressalta Vitalina.
http://fantastico.globo.com/Jornalismo/FANT/0,,MUL1630183-15605,00.html

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