sábado, 18 de dezembro de 2010

ENTREVISTA COM EURICO MONTEIRO-EXPRESSO DAS ILHAS.SAPO.CV

Eurico Monteiro: Morosidade afasta cidadãos da Justiça

O deputado do MpD aponta a lentidão como o maior problema actual da justiça em Cabo Verde, mas acredita que há soluções, seja através da criação de mais tribunais, seja através de mudanças no código penal. O parlamentar, no entanto, elogia o novo pacote aprovado na Assembleia Nacional, que resultou do consenso entre os dois maiores partidos cabo-verdianos, e diz acreditar que os cidadãos vão sentir os benefícios a médio prazo.
Na visão do MpD quais são os maiores problemas que a justiça está a enfrentar?
O MpD entende que o principal problema é a morosidade. É uma questão essencial. Na verdade, o número de processos pendentes é assustador, mais de 40 mil, e nós estamos a falar de pendentes no ministério público e nos tribunais. Não estamos a falar de pendentes na Polícia, que também as tem, além da pendência na sociedade. Ou seja, ilícitos e infracções que devem ser canalizadas para o sector da justiça mas que não são porque, como a justiça demora, as pessoas deixam pender e não dão início ao processo.
As pessoas acham que não vale a pena.
Com certeza. Sobretudo processos de valor reduzido acham que não vale a pena, que os processos não andam. Os crimes de furto, pequenas injúrias, as pessoas não apresentam queixa. Daí que há também essa pendência, o que torna o volume muito maior.
Como se resolve isso?
Temos a consciência de que não é de fácil resolução. Exige a conjugação de vários factores, mas um dos que não pode ser negligenciado, e o governo tem-no feito, é o factor da quantidade e qualidade dos recursos que estão disponíveis. Em termo de magistrados, de oficiais de justiça, dos equipamentos, do sistema de gestão desses equipamentos e da própria legislação, a chamada morosidade legal. É uma conjugação de factores que conduzem a esta morosidade. Nós chegámos à conclusão de que há uma rácio de cerca de 1 magistrado por cerca de 14 mil habitantes e, no prazo de um mandato, queremos reduzir essa rácio de 1 magistrado para cada 10 mil habitantes. Estes são objectivos quantitativos, o que significa que terá de ser feita uma mobilização maior de magistrados.
Que muitas vezes não se sentem atraídos, por uma questão de ordenados, por exemplo.
É uma verdade que os ordenados não são atractivos. Mas também é verdade que neste momento não podemos dizer que temos vagas por preencher. Mas tal não significa que não tenham de se introduzir factores de melhoria nas condições de trabalho. Todos estamos de acordo a esse respeito. Agora, na melhoria também temos uma filosofia, achamos que a remuneração de um magistrado deve ser transparente. Não é bom sinal dizer que o magistrado ganhe um vencimento, quando na verdade ganha mais um subsídio, ou um emolumento, e muitas vezes, são remunerações que ficam sob a responsabilidade do governo, podendo assim ser manipuladas, e isso não convém. Pensamos que o caminho é uma remuneração clara, única e que seja mais do que suficiente para manter o magistrado motivado nas suas funções. Tendo sempre em conta que os recursos do país não são largos, e que haverá que ter alguma moderação. Mas estando também ciente de que os magistrados são tutelares de um órgão de soberania e que a justiça é fundamental para a paz social e mesmo para o crescimento económico e portanto, a sociedade, no seu todo, tem também de fazer um sacrifício para que um magistrado seja bem recompensado. Por outro lado, há aqui também um factor de independência. E o MpD propôs um conjunto de medidas que reforça essa independência. Não discutimos se o magistrado em Cabo Verde é ou não independente, o que achamos é que essa independência é uma realidade dinâmica e que tem de ser uma preocupação constante de qualquer Estado de direito democrático. Maior independência traz sempre melhor justiça.
A criação de novos tribunais é também necessário?
Principalmente nos grandes centros urbanos, penso que seria interessante a criação de tribunais criminais de pequenas causas, que sejam capazes de julgar processos de menor gravidade que emperram a justiça e que causa o sentimento de insegurança.
A revisão de códigos e procedimentos, deve ser feita também?
Estamos abertos a isso. Por exemplo, no código do processo penal a prescrição só é interrompida com a marcação da data do julgamento. E isto provoca que grande parte dos processos acaba por causa da prescrição. Ou seja, as pessoas são punidas duas vezes, os processos não só não andam como morrem, o que geralmente acontece porque o julgamento não é marcado. Há sistemas em que se o processo é interrompido, pode-se apresentar queixa contra o Estado. Se o Estado não trabalha, as pessoas não podem ser prejudicadas, e portanto, nós também podemos modificar isto. É que isto são esquemas administrativos que os estados arranjam para não ter pendência, se acabarmos com os processos sem os julgar, é claro que acabamos, de uma forma artificial, com a pendência.
Mas os próprios juízes também não têm de estar mentalizados para reduzir a pendência?
Sim, claro, muitas vezes tem a ver com uma cultura dos magistrados. A cultura anglo-saxónica é totalmente diferente, mas aqui o magistrado tem uma cultura de entidade fechada numa espécie de redoma. Não conversa com as partes, não conversa com os advogados, não conversa com a imprensa, não recebe os cidadãos, é uma espécie de poder sacro, onde ninguém tem acesso. O seu processo mental, o seu processo de formulação de decisões requer uma distância enorme da sociedade. Procura demasiado o isolamento num mundo que está cada vez mais aberto ao diálogo. Com a independência e as garantias que os magistrados têm, não creio que haja necessidade de rodear-se dessas aparências. Mais, se os funcionários públicos estão ao serviço do cidadão, e mesmo tendo uma cultura que os juízes não são funcionários públicos, isso não quer dizer que não estejam também ao serviço dos cidadãos. É também preciso cultivar essa mentalidade que a justiça é feita para servir as pessoas, tem de haver celeridade, não se podem fazer exigências formalistas em excesso, que faça o magistrado perder de vista que o que interessa é o fundo da causa. Ou seja, os instrumentos necessários à boa decisão são importantes mas não se deve sacralizar os procedimentos. Portanto, é uma questão cultural. Mas penso que se consegue resolver isso com muita acção de formação, de sensibilização.
Outro factor são as secretarias judiciais.
Precisamos, de facto, de ter gente de apoio aos magistrados judiciais com qualificações para poder auxiliar os magistrados.
Para que o juiz se preocupe apenas com julgar.
Exactamente. Porque muitas vezes o juiz tem de fazer a gestão do processo, dos prazos, e tem de ter uma secretaria que o liberte disso. Portanto, é um conjunto de factores que deve ser trabalhado. Mas, também é visível a contribuição que temos dado, na oposição, para o modelo de justiça.
Em relação a esse modelo, quais as vantagens do novo pacote para a justiça?
É um pacote de justiça que concretiza a revisão constitucional, e só por isso já seria importante. Mas há mais e só falarei de algumas. Por exemplo, o reforço da independência do magistrado judicial: pela primeira vez introduziu-se, com mais rigor, a ideia da inamovibilidade dos juízes. Assistíamos, em Outubro, àquilo a que se chamava a ‘dança dos juízes' - mudá-los de comarca - o que criava uma instabilidade muito grande, muito juízes descontentes com essa mobilidade, agora os magistrados, salvo em condições muito especiais, não são transferidos sem o sem consentimento. A autonomia administrativa e financeira dos tribunais, que é histórica. A separação clara da gestão administrativa e financeira do ministério da justiça da gestão administrativa e financeira dos tribunais e das secretarias judiciais, que é feita pelo próprio corpo profissional, que gere os recursos administrativos, os financeiros, os recursos humanos, o que é uma ruptura muito grande. A criação de dois tribunais de relação - Barlavento e Sotavento - o que vai fazer com que o Supremo Tribunal de justiça fique mais liberto e assim ganhe mais rapidez, ao mesmo tempo a criação de duas instâncias acelera o prazo das decisões em termos de recurso, o que é um elemento-chave no sistema. O reforço da inspecção judicial é também importante. Cremos que são medidas importantes e que trazem vantagens, porque há maior responsabilização, maior independência e mais celeridade.
É um pacote para a justiça que os cidadãos vão sentir que vai mudar o seu dia a dia?
Estamos convencidos disso. Que as pessoas vão sentir benefícios. Claro que este pacote foi feito de forma consensual, se calhar podíamos ser mais ousados, mas estou convencido de que no seu todo conseguiram-se mudanças importantes e que vão ter repercussões na vida das pessoas e das empresas.
Que também vão ter de perceber que ainda vai levar um certo tempo para estar implementado.
Vai ter, seguramente, o seu tempo de maturação. Temos também de ter paciência, ainda estamos a testar algumas soluções e não podemos desistir perante as primeiras dificuldades. Por exemplo, separámos o presidente do Supremo Tribunal de Justiça do presidente do Conselho Superior de Magistratura. É uma fonte de potencial conflitos, mas temos de ter paciência e esperar que eventuais conflitos possam ser superados. A própria experiência acabará por estabelecer regras práticas de convivência. Os tribunais de relação não vão ser instalados agora, por exemplo, serão no prazo de três anos, apesar de o MpD defender apenas um ano. Mas tivemos de ter consensos, o que é importante é que haja tribunais de relação. Temos de dar tempo, mas a médio prazo acredito que vai ser possível constatar a utilidade das medidas. O que não significa que os problemas estejam todos resolvidos. Os parceiros judiciais terão de assumir uma atitude pró-activa também, de maior produtividade, de serviço público, e vai depender, essencialmente, dos recursos materiais e financeiros que forem alocados.
O governo também terá que dar um sinal?
O governo é que faz o orçamento. Vai receber os projectos de orçamento dos tribunais, os projectos de orçamento do Conselho Superior de Magistratura, mas é a única entidade que tem a competência para apresentar o orçamento.
Levanta-se sempre também a questão do Tribunal Constitucional. Porque é tão necessária a sua criação?
Não compreendemos o constrangimento. A importância do TC pode ser explicada por uma razão pragmática e outra mais teórica e filosófica. A primeira é: o STJ, com os problemas de morosidade que já tem, ficará mais liberto porque há uma série de questões que passarão para o TC, aumentando assim a sua capacidade de resposta. Mas a razão mais importante tem a ver com a matriz. Nós metemos uma acção no STJ, o STJ aplica uma norma que é inconstitucional, para onde recorremos? Para o mesmo STJ. Mesmo que se diga que o plenário é de agora cinco juízes são do mesmo tribunal, e isso cria dificuldades na apreciação da causa. Importante é que quando temos um TC temos um tribunal com uma cultura, uma vocação e uma aptidão constitucional. Ou seja, pessoas que têm a sensibilidade para a defesa da constituição. Pessoas que são especializadas nessa matéria. O TC tem, por exemplo, todo o direito eleitoral, que mexe com a essência do próprio regime. Todo o registo dos partidos políticos, todas as matérias de impugnação, e ainda de fiscalização efectiva do Estado. Essa é a razão que nos levou a batalhar, desde 99, pela criação do TC. Agora, uma coisa que não vamos discutir, sejamos governo ou oposição, é a distribuição dos juízes. É mau, porque marca o futuro dos juízes, quem pertence a que segmento político. Os três juízes devem ser consensuais, ou seja, as forças políticas no seu todo têm de chegar a acordo, só assim os juízes darão garantias de isenção, de seriedade no trabalho, na defesa da Constituição.
Jorge Montezinho, Redacção Praia
http://www.expressodasilhas.sapo.cv/pt/noticias/go/eurico-monteiro--morosidade-afasta-cidadaos-da-justica

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