Traída pelo coração, a voz de Cabo Verde calou-se aos 70 anos. Apagaram-se os brilhos, desligaram-se os microfones, fecharam-se as cortinas. Fica a "sôdade". Cesária Évora deixou mornas, coladeras e recordações.
Foi uma espécie de premonição. A 24 de Setembro do ano passado, Cesária Évora anunciou que iria por fim à sua carreira a conselho médico.Nesse mesmo dia foi internada depois de mais um acidente vascular cerebral. A morte levou-a pela manha, na sua ilha natal São Vicente. “Insuficiência cardio-respiratória e tensão cardíaca elevada”, constava no relatório médico.
Luto nacional
Sobretudo Cabo Verde sente a partida da "sua" voz. Para o Presidente da República, Jorge Carlos Fonseca, Cesária Évora representa um pouco a noção do que é ser cabo-verdiano. "O sentimento que me invade é de profunda tristeza e de grande desolação, porque com o desaparecimento físico de Cesária Évora desaparece uma das maiores figuras da cultura cabo-verdiana, particularmente da nossa música", destaca.
Foi graças a José da Silva, empresário e amigo da cantora, que seria descoberta primeiro em Paris e mais tarde pelo mundo. Por se apresentar nos espetáculos de pés nus, a cantora de voz melancólica recebeu o cognome de "diva dos pés descalços".
O abismo do álcool
A "Mudjer di pé na tchon" (mulher de pés no chão) nasceu no Mindelo, sem mordomias, a 27 de agosto de 1941. Filha de Joana, uma cozinheira de '"mão cheia" e de "Nhô" Justino da Cruz, tocador de viola, violão e cavaquinho.A música corria-lhe no sangue. As suas primeiras apresentações foram no Mindelo. Quem a acompanhava era Lela, um dos seus quatro irmãos.
Em 1975, com a independência do país, ela deixa de cantar e faz uma pausa de uma década e mergulha no alcoolismo. Voltaria à música em 1985, ano em que grava um disco em Lisboa que passa despercebido.
A estrela nasceu em Paris
Em 1988, aos 47 torna-se na estrela que merecia ser. Na cidade luz grava o álbum "La diva aux pied nus", que a revelou aos melómanos. Recebeu o Grammy para o melhor álbum de World Music contemporânea pelo disco "Voz d’Amor" em 2004. Cinco anos mais tarde o presidente francês, Nicolas Sarkozy, entregou-lhe a medalha da Legião de Honra, a mais alta condecoração civil francesa.
Dos palcos do Mindelo para os do mundo, escreve o jornal cabo-verdiano "Expresso das Ilhas", "perdeu as contas aos carimbos no passaporte mas, não perdeu a simplicidade que lhe era característica na forma de falar, de lidar com as pessoas, sem cerimônias, sem decoros exagerados, simplesmente a Cize. Uma Diva que gostava de anéis de ouro, de ter as unhas sempre arranjadas mas, que nunca gostou de sapatos e talvez por isso tenha mantido os pés bem assentes na terra, apesar da sua grandiosidade e reconhecimento pelos vários cantos e recantos do mundo por onde já andou."
"Tenho os pés cheios de calos" disse tranquilamente a um jornalista do ‘I', diário português. "Quiseram sobrevalorizar o facto de cantar descalça", escreve o Expresso das Ilhas", "divulgando que seria em solidariedade às mulheres e crianças pobres do seu país. Cesária Évora poderia ter aproveitado o protagonismo, mas desmentiu. "Canto descalça porque gosto".
Apagaram-se os brilhos, desligaram-se os microfones, fecharam-se as cortinas. Fica a “sôdade”.
Autor: Helena Ferro de Gouveia
Edição: Bettina Riffel/António Rocha
Foto:Sapo.cv
FONTE:http://www.dw-world.de/dw/article/0,,15613425,00.html
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