As minhas primeiras palavras são dirigidas aos familiares, amigos, e aos que privaram mais de perto com esta mulher que, morrendo, ainda assim tem o condão de nos deixar ricos, pois a riqueza da sua arte não se desvanece com o seu desaparecimento físico; ela está verdadeiramente incrustada na nossa alma, no nosso ser, nos nossos corações.
S. Vicente, Cabo Verde e o mundo estão de luto. A diva deixou-nos. A grande intérprete de boa parte dos nossos melhores compositores, a voz que nos levou a todos na garupa de Cabo Verde a todos os cantos do mundo, provando que na arte as fronteiras inexistem e que a humana linguagem da emoção não conhece barreiras foi, como diria Frank Cavaquim, para a esperança mais certa que temos, a eternidade
.
Na qualidade de Chefe de Estado mas igualmente na condição de cidadão deste país que teve a felicidade de, por algumas vezes, desfrutar directamente da atenção e morabeza dessa cidadã do mundo, rendo , particularmente através da família, uma sentida homenagem à mulher que levou o nosso país através do que ele tem de mais genuíno, a nossa música, a praticamente todos os cantos deste planeta.
Cesária partiu. Uma dor muito doída se apossou de nós, de todos nós. No país e na diáspora, Cabo Verde parou para chorar, par se irmanar e se fortalecer na dor. Apesar da riqueza que ela nos deixa, nos foi deixando, com a Cesária todos morremos um pouco.
À família de Cesária Évora apresento, em meu nome e no da Nação que tanto a ela fica devendo, sentidas e fundas condolências.
S. Vicente acaba de perder uma das suas filhas mais emblemáticas, aquela que percorria os palcos do mundo, escutava os mais estendidos e sonoros aplausos, ocupava as manchetes de grandes jornais do mundo, mas não se esquecia da sua terrinha, da sua gente, do lugar onde tem o enterrado o umbigo. No final das suas tournées, Cize rumava para Mindelo, como se quisesse em permanência testar se o Porto Grande continuava a ser o coração aberto para a receber quando quisesse voltar. Quiçá, desconfiada, Cize pretendesse verificar se a ilha também escutava, com ciência, e aquiescência, a máxima de Nho Eugénio (má si ca badu ka ta biradu).
Minhas senhoras e Meus senhores,
As nações, os povos, as comunidades constroem-se, estruturam-se, afirmam-se a partir de elementos-chave que fazem com que factores físicos como o território e outros de natureza mais ou menos simbólica, como a língua, a cultura se amalgamem às pessoas para edificar uma unidade que se autonomiza em relação aos seus diversos componentes, criando uma nova realidade.
Essa entidade que representa e transcende as pessoas, o espaço, o concreto, é de natureza essencialmente simbólica . Ela une e contém a diversidade e serve de referência para a definição de identidades, como a nacional, por exemplo.
Ela alimenta-se da energia que emerge da circunstância de personalidades muito diferentes, com percursos históricos e psicológicos os mais diversos se unirem, ao reconhecer-se como parte de algo que não é necessariamente material.
Essa força emana de um processo de construção permanente que permite que gente que não se conhece, que nunca se encontrou e muitas vezes representa interesses muito diferentes, senão opostos, se reconheça nos aspectos mais relevantes dessa unidade.
Mas esse processo necessita de ser permanentemente vivificado através da utilização de símbolos que permitem garantir o diálogo permanente através da identificação mais ou menos colectiva com os mesmos.
É este o papel que cabe ao culto dos símbolos, como os hinos, as bandeiras e os heróis, isto é, às mulheres e aos homens que assumiram em determinados contextos causas consideradas representativas da comunidade e as defenderam de modo excelso, determinado e, amiúde, com grande sacrifício.
Geralmente essas pessoas encarnam valores considerados essenciais pela comunidade e, por isso, são honradas, perpetuadas, cantadas, glorificadas.
Minhas senhoras e meus senhores,
Não creio que Cesária Évora, essa singularíssima figura da nossa cultura, das nossas vidas, que traduz como poucos até agora a profundeza da nossa alma, deva ser considerada uma heroína.
Não que não tenha prestado serviços eméritos à comunidade cabo-verdiana e ao mundo, emprestando uma dimensão universal a criadores cabo-verdianos que discorreram sobre miudezas ou sobre questões que interpelam toda a humanidade.
Sim, Cesária foi um dos raros seres que, com a sensibilidade que recria sonoridades e estabelece na simplicidade um elo intencionadamente efémero entre a emoção e o prazer, por vezes dorido, conseguiu erguer, a nível emocional, uma síntese quase perfeita entre o quase nada e a totalidade universal.
Cesária foi uma deusa terrena que, a partir da noite de Mindelo, da qual sempre foi parcela integrante, iluminou o mundo, carregou a dor, o sofrimento, os anseios, as alegrias, os amores e desamores da nossa gente, de todos nós, de Monte Sossego a Ponta Belém, de Minas Gerais a Ribeira Bote, de Lisboa a Paris, de Nova Sintra a Rotterdam, de Luanda, Havana ou Tóquio a ribeira de Ilhéu, sempre com bilhete de regresso a Mindelo.
Minhas senhoras e meus senhores,
Cize assumiu a vida e o destino, transportando no corpo e na voz, de forma integral e intensa, valores muito caros a Cabo Verde. Desfraldou bandeiras representativas da colectividade, sem discursos, sem proclamações. O seu manifesto foi a vida, difícil por vezes, mas rica, vivida com perseverança, com grande humildade e extraordinária generosidade(por vezes com um sorriso inteligente e misterioso), mesmo depois de se alcandorar definitivamente à consagração universal.
A liberdade e a autenticidade apenas acessíveis aos eleitos foram proverbiais características desta grande dama, desta cabo-verdiana que, de certa forma, encarna a singela tenacidade, a tensa fibra da mulher crioula, pois a luta, por vezes dura, que sempre foi o seu apanágio não a impedia de aveludar o diálogo de b-leza com o mar azul, ou a sodade de todos nós, de forma tão sublime que quase tocava o divino.
Não penso que essa mulher possa ser considerada uma heroína. É facto que a trajectória da sua arte construiu e alimentou uma muito rara unanimidade que aqui nasce , congrega estas ilhas, este pequeno país que no mar parece uma areia que não se molha, e que se espalha e vivifica por esse mundo fora que, há três dias, chora com a família, com Mindelo, com Cabo Verde, a morte de Cize. QUEM HOJE DUVIDA que, com Cesária, nos transmutámos de arquipélago pequeno a nação imensa e de um originariamente improvável cosmopolitismo? Cabo Verde hoje bordeja, toca, abraça, ri e chora com o mundo, através de sua Cize.
Com a sua voz rara, com a sua aparentemente fácil criatividade, parece penetrar e absorver a beleza intuída e instalada no coração dos poetas e magicamente transformar-se na ponte que o unia a milhões de outros corações.
Cize morreu mas não pode ser uma heroína. A heroína é um símbolo e Cesária não é (apenas) um símbolo, não pode ser um símbolo apenas. Ou talvez possa ser um símbolo diferente. Um símbolo que se projecta na concretude de um mundo, o nosso mundo.
Monte Cara não é um símbolo de S. Vicente, ele é S. Vicente. O vulcão não é um símbolo do Fogo, ele é a ilha. Cidade Velha não é um símbolo de Santiago, ele é Santiago e ele é Cabo Verde
Cesária não é um símbolo de Cabo Verde, Cize somos nós todos, É CABO VERDE.
DESCULPEM-ME A AUSÊNCIA DE SUFICIENTE IMAGINAÇÃO PARA ME PERMITIREM REPETIR O QUE HÁ DIAS,
AO SABER DO DESAPARECIMENTO FÍSICO DE CESÁRIA, PUDE DIZER: CIZE ERA – É – ÚNICA, ÍMPAR NA VOZ QUE SOBREVOOU O PEQUENO ESPAÇO DAS ILHAS E PAIROU SOBRE O CONTINENTE VASTO DE UMA ALMA, A NOSSA, QUE REJEITA SER FEITA DE PEDAÇOS DE CADA UM DE NÓS.
NA IMPOSSIBILIDADE DE RETRIBUIRMOS À CESÁRIA O QUANTO ELA NOS DEU, APENAS PODEMOS APRISIONÁ-LA NOS NOSOS CORAÇÕES, TORNÁ-LA DEUSA FEITA MÚSICA, DE UM PAÍS SOFRIDO, COMBALIDO, MAS ETERNAMENTE GRATO A QUEM TANTO FEZ PARA DAR RAZÃO AO POETA QUE UM DIA DISSE « MON PAYS EST UNE MUSIQUE».
MINHAS SENHORAS E MEUS SENHORES, POVO DE CABO VERDE,
PARECE DE FACTO QUE A NAÇÃO INTEIRA, SOFRIDA, DORIDA, DE TANTO DEVEDORA SENTIR-SE, ASSUMIU DEFINITIVAMENTE O ÓNUS, UM EPICÚRICO ÓNUS, DE RESPONDER COM ESTE GRANDE E VISÍVEL POEMA DE AMOR À SUA ETERNA MUSA.
EM NOME DO POVO DE CABO VERDE, INCLINO-ME RESPEITOSAMENTE PERANTE A MEMÓRIA DE CESÁRIA ÉVORA E REITERO À SUA EXCELENTÍSSIMA FAMÍLIA A MINHA MAIS FUNDA E GENUÍNA HOMENAGEM.
Muito obrigado a todos.
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