PRAIA-Na conferência para assinalar os 18 anos da Magna Carta cabo-verdiana, organizada pelo Instituto Superior de Ciências Jurídicas e Sociais, recordou-se o documento que assegura os direitos e as liberdades dos cidadãos. Um texto, por vezes, demasiado esquecido, como sublinharam os conferencistas.
"Só posso dizer que é uma das melhores constituições dos países lusófonos", afirma ao Expresso das Ilhas, Melo Alexandrino, professor da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, e um dos oradores do colóquio. "É uma constituição clara, logo em 1992, de direito, num estado constitucional. Em termos de valores, é uma constituição que aposta na liberdade e na dignidade da pessoa, e ao mesmo tempo está preocupada com essas dimensões da constituição".
"A constituição tem uma tendência para se realizar, sobretudo na parte da justiça, e a revisão de 2010, comprova que a constituição quer acertar o passo com a realização efectiva das suas normas".
Mas nem tudo está bem, na visão do docente, mais tarde reiterada pelo presidente do ISCJS, Jorge Carlos Fonseca, falta o Tribunal Constitucional. "É preciso aperfeiçoar a justiça constitucional", salienta Melo Alexandrino, "por um lado, a cultura constitucional vai-se construindo, pouco a pouco, quer na sociedade, quer nos tribunais, e esse é um processo relativamente ao qual devemos ter alguma benevolência. Por outro lado, sem Tribunal Constitucional, e tendo um supremo que também está sobrecarregado, porque não há tribunal de segunda estância, não podemos exigir demasiado ao sistema. A constituição em si, como documento, é quase exemplar, e na revisão de 2010, parece que houve uma segunda vantagem que foi ampliar o consenso à volta da constituição. Portanto, mais um ponto a favor".
Os tribunais e a defesa dos direitos dos cidadãos
Na conferência que proferiu, na Cidade da Praia, Melo Alexandrino explicou que, na opinião de alguns sociólogos, um dos principais problemas dos países em vias de desenvolvimento situa-se ao nível da mudança das opções de valores. "A ser verdade, talvez resida aí, ou seja, na abertura a novos valores, uma das chaves para entender o formidável percurso de Cabo Verde desde que se tornou uma Nação independente".
"Na sua dimensão político-constitucional, é essa chave que me parece estar subjacente às seguintes palavras utilizadas no parágrafo 6.º do preâmbulo da Constituição de 25 de Setembro de 1992: ‘[não obstante a democracia continuasse a conviver com regras e princípios típicos do regime anterior] a realidade social e política em que vivia o país encontrava-se num processo de rápidas e profundas transformações, com assunção por parte das populações e forças políticas emergentes de valores que caracterizam o Estado de Direito Democrático, e que, pelo seu conteúdo, configuravam já um modelo material ainda não espelhado no texto da Constituição'."
"No entanto, é uma pequena passagem do 10.º parágrafo, desse mesmo preâmbulo, que deixa o jurista verdadeiramente encandeado: quando aí se escreveu que o legislador constituinte assumia ‘a concepção da dignidade da pessoa humana como valor absoluto e sobrepondo-se ao próprio Estado'."
"Neste caso, o jurista não tem dúvidas de que neste sistema constitucional há um valor verdadeiramente cimeiro e intangível. E isso não é pouco! É aliás tão raro que Cabo Verde é o único país de língua oficial portuguesa onde se dá semelhante reconhecimento".
Não há constituições perfeitas
Mais tarde, novamente em conversa com o Expresso das Ilhas, o professor universitário refere que não se pode olhar também para as constituições como textos sagrados e onde não se pode mexer. Mas Melo Alexandrino adverte, também que, por vezes, "os políticos e os partidos acham que a vão melhorar através da introdução de revisões mas introduzem é ruído e prejudicam a constituição. Veja a dos Estados Unidos da América, por exemplo, tem 230 anos, e é possível adaptar-se à realidade, através da interpretação, feita através de juristas, que, com a ajuda da sociedade e de reflexões profundas, conseguem encontrar respostas, mesmo para problemas totalmente novos que a constituição nunca pensou nem podia pensar".
E a constituição é sensível a transformações que a realidade social vai exigindo. Por exemplo, os direitos das mulheres. "Em alguns países é um texto venerado, isto é, quando se vai tocar na constituição faz-se respeitosamente, e noutros faz-se mais levianamente. Em Portugal, por exemplo fala-se em frenesim revisionista".
Importante para o docente é a educação para os direitos, "é fundamental que as pessoas saibam que a constituição serve para as defender. Mas isso faz parte da qualidade da educação que é fornecida. Temos de privilegiar essa componente. Hoje é tudo mais hedonista, mais individualista. O bem comum é visto como um grande aborrecimento, é preciso técnicas para que essa mensagem seja atraente", conclui Melo Alexandrino.
Constituição e direitos das mulheres
Fernanda Fernandes, advogada brasileira, feminista e investigadora de direito, também oradora no colóquio, coloca a ênfase na necessidade da igualdade de género estar bem expressa na constituição. "Quando falamos de constituição escrita é importante que essa igualdade esteja prevista, principalmente quando ainda não é uma realidade. Acho que a importância da igualdade estar prevista é porque, no plano da realidade, essa igualdade está ainda a ser conquistada, e se ela já está na constituição então é um instrumento de reivindicação para a atingir".
"Se vivêssemos numa sociedade em que isso já fosse uma realidade, um facto, não era preciso que estivesse escrito. Penso que uma das funções da constituição é também mostrar aquilo que a sociedade almeja ser, trazer os anseios de uma sociedade igualitária, justa, solidária".
"Em Cabo Verde, a constituição garante, em vários pontos, essa igualdade. É já um bom instrumento para a luta das mulheres cabo-verdianas", afirma Fernanda Fernandes.
Independência e direito das mulheres, pontos em comum
A independência de Cabo Verde e as lutas em prol das mulheres têm várias coincidências históricas, como recorda Cláudia Rodrigues, presidente do Instituto Cabo-verdiano para a Igualdade e Equidade de Género. 1975, é denominado, pela ONU, como Ano da Mulher, e ainda neste ano realiza-se, na Cidade do México, a 1ª Conferência Internacional sobre as Mulheres.
Vários esforços são conseguidos nos anos imediatos à independência de Cabo Verde, e demonstram uma evidência clara, segundo Cláudia Rodrigues, de um "movimento de contornos feministas" nacional, impulsionado pelas mulheres que participaram activamente na luta de libertação de Cabo Verde.
Numa breve análise histórica, a responsável do ICIEG aponta as vitórias que vão sendo alcançadas. Em 1975 é reconhecido, numa base universal e igual, o direito de voto. Em 1978 é criada a Comissão Nacional Organizadora das Mulheres de Cabo Verde. Em 1979 são rectificadas as convenções da OIT [Organização Internacional do Trabalho] que defendem o principio geral de igualdade de remuneração entre homens e mulheres que realizam o mesmo tipo de trabalho e a não discriminação no emprego em função do sexo.
Em 1980, durante a primeira constituição da República de Cabo Verde, estão expressos os princípios de igualdade, estando mesmo explícito que "o homem e a mulher são iguais perante a lei em todos os planos da vida política, económica, social e cultural" [artigo 23º].
A constituição de 1992 e toda essa década, fica marcada, em termos de ganhos para a igualdade de género, pelo reforço da participação da mulher nos processos de tomada de decisões, com o início da sua presença no poder executivo, e pela multiplicação das organizações da sociedade civil que visam a igualdade de género, a Morabi, a AMJ, a Rede de Mulheres Parlamentares.
A constituição de 1992 estipulou entre os princípios fundamentais "o reconhecimento da inviolabilidade e inalienabilidade dos Direitos Humanos como fundamento de toda a comunidade humana", reafirmando a igualdade de todos os cidadãos perante a lei e estipulando que é uma tarefa do estado acabar com os obstáculos culturais, sociais, económicos e políticos que impedem a igualdade entre homem e mulher.
Em 1996, em Cabo Verde é elaborado o primeiro Plano de Acção Nacional de Promoção da Mulher, e em 1997, o Código Civil conferiu a ambos os cônjuges igualdade de direitos e deveres na família.
Em 1999, com a revisão constitucional, aprofunda-se o reconhecimento dos direitos das mulheres e reafirma ser função do estado a remoção dos obstáculos que impedem a real igualdade de oportunidades entre cidadãos, incentivando a participação de cidadãos de ambos os sexos na vida política e criminalizando a violência doméstica contra a mulher, que passa a crime semi-público, em 2004, e que, este ano, poderá ser considerado crime público, o decreto-lei já foi aprovado na generalidade, falta o debate na especialidade. Em 2008, Cabo Verde passou a ser o segundo país do mundo a ter um governo de configuração paritária, oito mulheres ministras para sete homens ministros.
"A constituição tem contribuído para moldar e definir a sociedade cabo-verdiana no que respeita à promoção dos direitos das mulheres e deve continuar a fazer valer os seus princípios. Deve continuar a ser um instrumento para que a igualdade formal, ou seja, a igualdade na lei, se transforme, de facto, em igualdade de tratamento, em igualdade real" realça Cláudia Rodrigues.
18 anos de constituição ou de constitucionalismo?
A tese foi apresentada pelo presidente do ISCJS, Jorge Carlos Fonseca que começou por recordar o artigo 16.º dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789, "toda a sociedade em que a garantia dos direitos não é assegurada, nem a separação dos poderes determinada, não tem uma constituição".
"Foram necessários séculos, para que o homem político se apercebesse, e aprendesse, que a sociedade justa, dependia da existência e real funcionamento de limites impostos aos detentores do poder. E a melhor forma de alcançar este objectivo, seria através de um conjunto organizado e sistematizado de regras - uma constituição".
Para Jorge Carlos Fonseca, o que Cabo Verde viveu, nestes últimos 18 anos, não foi uma constituição, mas um constitucionalismo.
"A ideia parte do conceito moderno de constitucionalismo e de estado constitucional", explica o professor universitário, "isto é, só há estado constitucional quando esse mesmo estado está fundado e limitado pela constituição, quando é a própria constituição que funda o estado e limita os poderes desse mesmo estado. Para mim, na constituição de 80, o partido único é que estava acima do estado e da própria constituição. Um exemplo, na constituição de 80, o Presidente da República, quando prestava juramento, comprometia-se a ter fidelidade aos princípios e objectivos do partido e à constituição, ou seja a Magna Carta vinha em segundo lugar. Ora, se não há separação de poderes, nem direitos individuais, não há constituição. Só a partir de 1992 há um estado de direito".
Para Jorge Carlos Fonseca, é ainda preciso dar outro passo, a criação do Tribunal Constitucional, considerada fundamental. "Já o defendo desde 1998, sobretudo pela intervenção pedagógica que pode ter na divulgação de uma cultura de constituição, junto de toda a gente, magistrados, advogados, responsáveis políticos e cidadãos. Levar as pessoas a conhecer e a aplicar a constituição no dia a dia. Mesmo os juristas, por vezes, olham para a constituição como algo distante, um papel que está lá. E, na verdade, os direitos constitucionais estão acima de todos os outros", reforça o presidente do ISCJS.
Expresso das Ilhas-http://www.expressodasilhas.sapo.cv/pt/noticias/go/constituicao-de-cabo-verde-e-das-melhores-entre-os-paises-lusofonos
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