Renato Cardoso
Sempre que se evoca o nome de Renato Cardoso ocorre-nos o homem brilhante que ele foi e logo de seguida as circunstâncias da sua morte ocorrida em Setembro de 1989, até hoje ainda por desvendar. No seu livro,
"Marcas Lamentáveis da Luta Pela Democracia em Cabo Verde", publicado em 2010, José Manuel Veiga, revela novas pistas sobre os motivos do assassinato de Renato Cardoso, cujas ideias começavam a representar "uma séria ameaça a alguns dirigentes altamente colocados". "Muita gente dentro do aparelho do partido teve conhecimento do plano, tendo inclusivamente um amigo avisado o Renato para o perigo que ele corria", escreve José Manuel Veiga. Este caderno dedicado ao 60º aniversário de Renato Cardoso que se assinala amanhã, 1º de Dezembro, mesmo por razões de espaço, deixa de lado o seu assassinato que na opinião de muitos nunca foi devidamente investigado, para se centrar no seu legado político, profissional e cultural. Para isso ouvimos várias personalidades que o conheceram de perto a nível profissional, político ou privado: Florentino Cardoso, Manuel Faustino, Carlos Veiga, Romeu Modesto, Antero Veiga, Brito Semedo e Iolanda Évora.
"Marcas Lamentáveis da Luta Pela Democracia em Cabo Verde", publicado em 2010, José Manuel Veiga, revela novas pistas sobre os motivos do assassinato de Renato Cardoso, cujas ideias começavam a representar "uma séria ameaça a alguns dirigentes altamente colocados". "Muita gente dentro do aparelho do partido teve conhecimento do plano, tendo inclusivamente um amigo avisado o Renato para o perigo que ele corria", escreve José Manuel Veiga. Este caderno dedicado ao 60º aniversário de Renato Cardoso que se assinala amanhã, 1º de Dezembro, mesmo por razões de espaço, deixa de lado o seu assassinato que na opinião de muitos nunca foi devidamente investigado, para se centrar no seu legado político, profissional e cultural. Para isso ouvimos várias personalidades que o conheceram de perto a nível profissional, político ou privado: Florentino Cardoso, Manuel Faustino, Carlos Veiga, Romeu Modesto, Antero Veiga, Brito Semedo e Iolanda Évora.
A infância em São Vicente
Renato de Silos Cardoso nasceu no Mindelo no dia 1 de Dezembro de 1951. Fez os estudos secundários no Liceu Gil Eanes, em S. Vicente e licenciou-se em Direito pela Universidade de Lisboa. Foi vice-presidente da comissão preparatória das eleições para a Independência, em 1975; Director-Geral da Administração Interna;
Director-Geral dos Assuntos Políticos, Económicos e Culturais do MNE; conselheiro do Primeiro-Ministro;
Secretário de Estado da Administração Pública à data da sua morte. Seu irmão, Florentino Cardoso, recorda que era uma criança igual às outras e nada deixava antever o caminho brilhante que viria a percorrer para a edificação de uma administração pública genuinamente cabo-verdiana. Pelo contrário, afirma o irmão, ele devorava as revistas em voga na altura ((Zorro, Fantasma, Asterix) o que lhe causou muitos dissabores em casa. "O Renato era um leitor assíduo de revistinhas e muitas vezes foi punido. Ele perdia muito tempo com a leitura dessas revistinhas e foi uma chatice para os meus país porque o Renato não foi de facto um estudante tão dedicado como isso", relembra Florentino Cardoso. Também Brito Semedo, amigo de infância, em São Vicente, recorda a troca das revistas de quadradinhos da época, mas que serviu de um elo de ligação que perdurou até à morte de Renato Cardoso, em 29 de Setembro de 1989. "Conhecemo-nos na escola dominical e trocávamos revistinhas de quadradinhos da época. Ele morava no Madeiralzinho, perto da Igreja do Nazareno e havia um grupinho muito interessante formado por rapazinhos e meninas com quem estabeleci ligação que foi muito importante nessa fase de formação da minha personalidade, em termos de interiorização de valores da Igreja do Nazareno", evoca. Essa ligação continua na idade adulta. Renato Cardoso, então conselheiro do primeiro ministro Pedro Pires, convida Brito Semedo para trabalhar com ele no Gabinete do Primeiro Ministro no âmbito do projecto de reforma da administração pública. Os caminhos dos dois amigos desencontram-se, em 1986, com a nomeação de Renato Cardoso para o cargo de Secretário de Estado da Administração Pública. "Ele queria até que eu trabalhasse mais próximo dele, o que acabou por não acontecer, porque, entretanto, ele morre", conta Brito Semedo.
Um homem brilhante
Se as opiniões divergem sobre o perfil político de Renato Cardoso, devido à quase ausência no seu discurso de fraseologia de esquerda marxizante e revolucionária da época em que viveu e por ter ocupado elevados cargos durante o regime do PAICV, todos os entrevistados são unânimes em destacar o intelectual, o diplomata e o homem de cultura que foi Renato Cardoso. Carlos Veiga, o actual presidente do MpD, conheceu Renato Cardoso logo a seguir à independência de Cabo Verde, ressalta o seu contributo na área da administração pública e no plano diplomático. "De facto, era um homem brilhante, com uma criatividade bastante grande, com um nível cultural muito elevado, uma consciência patriótica muito profunda. Tinha tudo para dar uma contribuição muito boa para Cabo Verde. Infelizmente morreu muito cedo". Manuel Faustino, com quem partilhou durante dois a nos, a mesma casa, por causa da escassez de habitação na Praia, defende a mesma opinião. "Com a morte de Renato Cardoso, Cabo Verde perdeu um quadro muito capaz e competente, sobretudo inquieto e que procurava cultivar o rigor, o estudo e o compromisso com os interesses de Cabo Verde", acrescentado que a articulação entre o conhecimento e a prática era a sua obsessão permanente. Antero Veiga, integrou, em 1986, como jovem quadro formado nos Estados Unidos, a Secretaria de Estado da Administração Pública, de que era Secretário de Estado "o jovem e brilhante homem do direito e da administração, Renato Cardoso". Para Antero Veiga Cabo Verde perdeu com a morte de Renato Cardoso uma das suas maiores promessas dos anos 80, tanto do ponto de vista profissional, político e cultural. "O país perdeu, prematuramente, um diplomata substancial na sementeira da paz, um governante lúcido e muito disponível e acessível, e um homem de cultura, poeta e músico, isto é, alguém que demonstrou que podemos dar muito à nossa terra, apesar da fragilidade da vida", afirma.A equipa técnica do Secretariado de Estado da Administração Pública
A mítica equipa técnica do Secretariado de Estado da Administração Pública foi formada por Renato Cardoso com quadros recém-licenciados no Brasil e Portugal. Como recorda Iolanda Évora, "pode-se dizer que Renato Cardoso ´recrutou´ alguns de nós ainda no país de formação, antes mesmo do nosso regresso. Foi uma acção arrojada e inovadora da parte dele: um dirigente que antecipa-se e contacta os técnicos que lhe interessam.
Pode-se dizer que ele é que patrocinou o nosso estágio da FUNDAP (Fundação do Desenvolvimento Administrativo) em São Paulo, preparando-nos para o trabalho em Cabo Verde. Pelo menos os que não tinham como formação original os cursos de Administração Pública ou Direito". Esta equipa multidisciplinar de técnicos superiores (administração pública, direito, psicologia, sociologia e finanças públicas), como recorda Romeu Modesto, era motivada e estimulada por Renato Cardoso a estudar e a desenvolver-se permanentemente. "Esta equipa soube aprender com a experiência dos DGA's que na altura eram quadros mais experientes e conhecedores da legislação e do funcionamento da Administração Pública Colonial e que montaram a Administração Pública Cabo-verdiana. Dialogávamos bastante entre nós e instituímos os "famosos" brainstorming semanais, extensivo a quadros de outros departamentos governamentais e do sector empresarial estatal, para melhor conhecer a realidade do sector público e definir as soluções aos problemas e ir melhorando o funcionamento dos serviços". Antero Veiga sublinha igualmente os ganhos desta equipa chefiada por Renato Cardoso que introduziu na máquina administrativa colonial herdada um processo de mudança de comportamentos, atitudes e práticas mais promotoras e facilitadoras do processo de desenvolvimento do país, cuja dinâmica, com maior ou menor intensidade, seria prosseguida após a sua morte. "Desde a introdução de computadores na Função Pública, através da primeira Base de Dados da Administração Pública; passando por um intenso e diversificado programa de formação de chefias intermédias e Directores; à reconfiguração de orgânicas dos Ministérios para introduzir Gabinetes de Estudo e Planeamento e Direcções de Recursos Humanos; estudos prévios que conduziram à adopção do Plano de Cargos, Carreiras e Salários ainda em vigor; prática de diálogo intenso e debate sobre a mudança", relata Antero Veiga.
Renato Cardoso e a política
O posicionamento político de Renato Cardoso tem sido analisado sob diferentes perspectivas desde a sua morte em Setembro de 1989. Num ensaio escrito por ocasião do 8º aniversário da sua morte, Leão Lopes, assinalou a aparente ambiguidade das opções de Renato Cardoso em momentos de crise no seio do regime ao qual se manteve fiel, oscilando entre a ruptura e a utopia, perante um regime que não soube integrar as novas formas de pensamento que emergiam da sociedade. "Reprimia, a seu jeito, qualquer iniciativa divergente que surgisse e quisesse fugir ao seu controlo e "devido enquadramento ideológico". Renato viu-se, qual trovador errante, refugiado e só na sua última utopia; música e poesia", comenta Leão Lopes, sem desmerecer a "a paixão desmedida" que tinha por Cabo Verde. Tem-se chamado também atenção à influência religiosa de cariz protestante como responsável pela quase completa ausência de fraseologia de esquerda marxizante e revolucionária da época nos seus discursos orais e escritos. Com a queda do bloco comunista nos finais dos anos 80 pode-se questionar com o seu irmão Florentino, se Renato Cardoso não estava ideologicamente à frente dos seus correligionários que lhe criticavam. "Eu não diria claramente que ele era um homem tanto de esquerda como isso, ele era mais um cidadão ciente dos seus valores e se esses valores são de esquerda ou da direita não é relevante", afirma, lembrando que na direita há também valores extremamente importantes. E são esses valores que Florentino Cardoso recebeu em casa com o irmão através da educação religiosa e que na sua opinião são hoje ignorados que ele quer ver reposto. "Eu gostaria que esses valores fossem devidamente ressaltados, porque houve uma tentativa de referir coisas outras que não esses valores, nomeadamente a ligação e o apreço por mulheres e essas coisas todas, e isso não é bom. Gostava imenso que essas realidades e essas questões fossem devidamente vincadas, porque já é tempo de se fazer um pouco mais de justiça".
Carlos Veiga dá também conta do dilema política de Renato Cardoso. Veiga valoriza o seu trabalho no sentido de uma maior abertura do próprio regime, mas questiona se ele, caso fosse vivo na altura, entraria ou não formalmente no MpD. "Sinceramente que não sei. Provavelmente sim. Mas não é coisa que se possa agora dizer que ele estaria dentro. Eu acho que, em termos de princípios, provavelmente estaríamos muito próximos.
Agora, o posicionamento dele, até pela relação muito próxima que tinha com o primeiro-ministro naquela altura, não sei sinceramente. Para dizer com a maior franqueza, talvez ele não entrasse formalmente no MpD, mas eu creio que, em termos de princípio, nós estaríamos muito próximos". Também Manuel Faustino não está seguro qual seria o percurso político de Renato Cardoso se ele não tivesse morrido. "Os tempos no mundo e em Cabo Verde mudaram muito. Contudo, se os aspectos essenciais da sua atitude como a busca constante do conhecimento, o compromisso com os mais fracos e a verticalidade se mantivessem, creio que se afirmaria como um independente, assumindo-se como contemporâneo do seu tempo".
O Legado musical
Renato Cardoso era um exímio tocador de violão e compositor ímpar que cantava as suas mornas-baladas em círculos restritos de amigos. Sendo um género musical novo em Cabo Verde, as suas baladas foram divulgadas ao grande público pelos conjuntos "Os Tubarões" e "Bulimundo". Em 1999 Manuel Brito Semedo compilou as quatro conhecidas baladas num livro que intitulou "A Morna-Balada - O Legado de Renato Cardoso". Além dos comentários do autor sobre este género musical, o livro tem o mérito de anexar a partitura das quatro baladas registadas de Renato Cardoso. "Normalmente as músicas de intervenção são datadas e desaparecem depois de um certo tempo. Mas pela qualidade da letra e pela qualidade da música que é feita, as baladas de Renato Cardoso continuam, mais de vinte anos após a sua morte, a serem apreciadas", sublinha Brito Semedo, acrescentando que a sua mensagem continua sendo actual. "Todo o processo da reforma da administração pública de que ele foi o grande impulsionador, vai buscar nas suas próprias letras as imagens de trabalho. O portal ligado à administração pública é ‘Porton di nôs ilha'; o nome do programa ‘mundo novo' é retirado da letra de uma música dele e quando se fala dos computadores para os alunos, fala-se em ‘Gota d´Água'. Basta isso para nós apercebermos como a sua música é ainda actual na nossa vida. Para o também compositor Manuel Faustino, o principal contributo de Renato Cardoso para a música, foi ter tentado e conseguido inovar sem distorcer. "Integrado num movimento mais amplo ele propôs uma nova sonoridade e um grande cuidado com a linguagem. Ele conciliava todas as influências musicais com uma verdadeira adoração pela música e pelos músicos cabo-verdianos, particularmente pelos instrumentistas especialmente violonistas solistas ou " acompanhadores".
Expresso das Ilhas
Sem comentários:
Enviar um comentário
Comentar com elegância e com respeito para o próximo.