Intervenção em sessão organizada pela ACPA - «Alcoolismo - Urgência nacional» - Dia 10 Novembro 2011.
Entre a globalização e a cultura
Exmo. Sr. Presidente da Associação Cabo-verdiana de Prevenção do Alcoolismo
Exmo. Sr. Representante da OMS
Exmo. Sr. Presidente da Assembleia Geral da Associação Cabo-verdiana de Prevenção do alcoolismo
Exmos. Srs. Membros do grupo terapêutico do Hospital Agostinho Neto
Minhas senhoras, meus senhores
Prezados jovens
Sinto-me profundamente honrado pelo convite da Associação Cabo-verdiana para a Prevenção do Alcoolismo em Cabo Verde para presidir este evento que tem por objectivo contribuir para uma reflexão em torno de uma problemática - o alcoolismo - com propriedade e justiça considerada uma urgência nacional.
Aproveito a oportunidade para desejar os maiores sucessos à associação e manifesto, desde já, toda a minha disponibilidade de cooperação, bem assim a da Presidência da República na extensão, aprofundamento e aprimoramento das medidas de prevenção e combate do alcoolismo.
O problema do alcoolismo converteu-se num dos fenómenos sociais mais generalizados das últimas décadas, tanto nos países do norte como do sul, e com força crescente em Cabo verde, onde é e deve continuar a ser fonte
de preocupação, não só das autoridades, como de toda a sociedade. Governo, associações e famílias devem assumir suas responsabilidades nesta matéria, desde a rua ao espaço privado.
Minhas senhoras e meus senhores,
Os tempos de hoje caracterizam-se por processos que tendem a generalizar-se e que se manifestam através de comportamentos que se estendem pelos quatro cantos do globo, ainda que assumindo características locais que os podem singularizar.
Geralmente a ideia do mundo como uma aldeia global refere-se a aspectos económicos, financeiros e ecológicos que, de forma mais ou menos clara, revelam no dia-a-dia a interdependência planetária.
Essa expressão também poderá, até certo ponto, alargar-se à esfera comportamental, uma vez que diferentes comportamentos tendem a generalizar-se, possivelmente como fruto do grande intercâmbio humano.
Assim, tanto aspectos positivos como negativos tendem a disseminar-se. A solidariedade é, sem dúvida, um desses aspectos positivos que muito se tem desenvolvido ao nível global. Importantes movimentos em torno de questões humanitárias, políticas e culturais têm conhecido importantes desenvolvimentos, mobilizando milhares de pessoas de todos os continentes em torno de causas diversas, mas sempre de grande conteúdo e sentido humanista.
Infelizmente, determinadas condutas inadequadas também tendem a expandir-se, como sejam os comportamentos violentos, especialmente no seio da juventude e o uso de substâncias psicoativas.
Essas substâncias sempre fizeram parte da vida das pessoas. O homem sempre teve necessidade de alterar o seu estado de consciência, como forma de se aproximar do divino ou como uma maneira de fugir das tensões do dia-a-dia.
Existem registos muito antigos desse uso. O álcool era considerado uma dádiva dos deuses: Osiris deu-o aos egípcios, Dionísio aos gregos e Noé aos hebreus.
Contudo, o facto de o início desse consumo se perder na noite dos tempos, não significa que ele não seja moldado pelas circunstâncias e pelas sociedades. Hoje, convém realçar que o que marca a relação com as bebidas alcoólicas é o facto de se ter perdido o controlo social do seu consumo.
Inicialmente esse controlo era assegurado por entidades religiosas ou ligadas à medicina. A perda desse controlo abriu as portas ao consumo danoso para a pessoa e muitas vezes para a família, e com fortes reflexos na sociedade. Actualmente o uso abusivo de álcool é considerado uma verdadeira epidemia à escala mundial.
Minhas senhoras e meus senhores,
Como a questão do álcool se apresenta a nível mundial?
A OMS considera o alcoolismo um dos mais graves problemas de saúde a nível mundial e calcula que, anualmente, cerca de 2,5 milhões de pessoas morram por causa do álcool, enquanto, aproximadamente, 200.000 pessoas faleçam devido ao uso de drogas ilícitas.
Paradoxalmente, os investimentos na luta contra o alcoolismo são pouco relevantes a nível internacional, provavelmente devido a poderosas razões de ordem económica e política, a que se associam elementos de ordem cultural.
Essa realidade mantém-se mesmo quando se sabe que os prejuízos causados pelo alcoolismo podem ser muito mais elevados do que os benefícios provenientes das actividades económicas em torno da sua produção e distribuição. Na União Europeia, por exemplo, pensa-se que as despesas realizadas para fazer face às consequenciais directas e indirectas do alcoolismo são cinco vezes superiores a esses benefícios.
As preocupações com as drogas ilícitas são muitíssimo maiores. Não obstante os grandes males que o uso abusivo de álcool provoca, esse consumo beneficia de grande tolerância social, exceptuando os países muçulmanos, o que dificulta de forma muito significativa a adopção de atitudes mais adequadas para enfrentar o problema.
Infelizmente, as consequências do consumo excessivo de bebidas alcoólicas são, como sabemos, altamente prejudiciais, pois o etanol atinge o sistema nervoso central, provocando alterações de comportamento, e, ao ser ingerido em excesso, provoca danos em quase todo o nosso organismo.
Para além desse efeito, absentismo laboral e perda de emprego, alteração de comportamento, violência, acidentes de trânsito ou de trabalho e problemas familiares, são consequências muito comuns do uso abusivo de álcool.
Ao mesmo tempo, o alcoolismo é uma doença de tal ordem que, apesar destas graves consequências, as pessoa têm muita dificuldade em parar de beber sem ajuda.
Minhas senhoras e meus senhores,
Quando abordamos o uso de álcool numa perspectiva ampla e histórica, não pretendemos com isso justificar a situação de Cabo Verde, mas situar o problema em toda a sua complexidade para que as soluções a serem procuradas tenham em conta a problemática em toda a sua dimensão.
É fundamental compreender os aspectos essenciais da doença para que ela possa ser encarada de forma adequada e sistemática.
Qual a situação de Cabo Verde?
Em Cabo Verde o uso de bebidas alcoólicas terá começado com a colonização que introduziu o milho e a cana sacarina, matéria-prima para a produção da aguardente, ao qual foi-se associando o consumo de outras bebidas como o vinho e a cerveja.
Admite-se que, para além do tabaco, o álcool tenha sido praticamente a única substancia psicocoativa utilizada em Cabo Verde até meados da década de setenta do século passado. A partir dessa altura a cannabis e outras drogas ilícitas terão sido introduzidas, mas o consumo de álcool sempre foi preponderante.
A penetração da aguardente na sociedade cabo-verdiana foi de tal ordem que mesmo durante a crise agrícola dos anos sessenta, com redução da produção de cana sacarina, a oferta de aguardente e similares não foi afectada. Lançou-se, também, mão da produção de aguardente de açúcar, cada vez mais importante, e da importação.
É muito provável que a introdução precoce da cana em Cabo Verde esteja associada à grande ligação da nossa cultura à aguardente. Na realidade, em praticamente todas as situações importantes, alegres ou tristes, o consumo de bebida alcoólica é praticamente obrigatório. Na tristeza, e na alegria, no nascimento e na morte, a propósito de tudo e de nada.
Aceitar esta realidade de ligação hábitos e atitudes culturalmente radicados, em boa medida, no nosso de estar, não significa justificar o seu consumo e muito menos o consumo abusivo. Pretende-se, sim, reconhecer uma complexa realidade com a qual se terá de lidar.
O que está inserido ou se mostra atinente à cultura, à tradição ou aos hábitos não tem que ser bom ou isento de riscos em qualquer circunstância. Existem elementos culturais positivos, muito positivos ou bons, a par de outros menos positivos ou francamente negativos, independentemente do papel que possam desempenhar nas dinâmicas culturais.
Não é pelo facto do álcool ter forte presença na cultura cabo-verdiana que se deve ignorar o risco que ele representa. Deve-se, pois, ter a consciência de que o facto de existir uma ligação muito forte entre a cultura e o álcool dificulta e condiciona a compreensão e assunção dos males que o álcool pode causar e a necessidade de abstinência em várias situações.
Minhas senhoras e meus senhores,
A produção e importação de bebidas alcoólicas têm aumentado de forma significativa em Cabo Verde, acontecendo o mesmo com a produção local de cerveja e vinho. Em 2007, a importação dessas bebidas rondou os 100 milhões de dólares. Nesse mesmo ano o alcoolismo foi a segunda causa de internamento psiquiátrico na Praia.
Se a produção de vinho, cerveja e parte da aguardente obedece a padrões aceitáveis de qualidade, o mesmo não se pode dizer de uma parte da produção de aguardente. Sérios problemas higiénicos com a utilização de substâncias altamente prejudicais para a saúde, como detergente e ácido sulfúrico, utilizadas para acelerar a fermentação, têm sido detectados.
Dados do Instituto Nacional de Estatística revelam que " os cabo-verdianos reservam igual montante do orçamento familiar para a saúde e para as bebidas alcoólicas, que representam o dobro do que gastam em educação.”
O Instituto Nacional de Previdência Social anuncia que cada vez mais a sociedade cabo-verdiana vem sentindo o impacto do uso exagerado do álcool, o que se reflecte em acidentes, no absentismo ao trabalho, na saúde e no desemprego.
Estudos do Ministério da Saúde e de outras fontes apontam o alcoolismo como um dos maiores problemas de saúde pública. Ele figura entre as principais causas de morbilidade e mortalidade.
Os internamentos psiquiátricos aumentam sem cessar, a participação das mulheres no consumo e nos internamentos tem crescido e, cada vez mais, a idade de início de consumo reduz-se.
A relação entre o uso excessivo de álcool, acidentes de viação e a violência, com destaque para a violência baseada no género, é cada vez mais evidente.
O sofrimento que o alcoolismo vem causando num número apreciável de famílias, as grandes repercussões ao nível do trabalho, da saúde das pessoas e do desenvolvimento da juventude, fazem com que ele seja considerado, de modo apropriado, uma urgência nacional.
Assim, torna-se imperioso que um grande esforço seja realizado a nível nacional para fazer face a esta problemática que ameaça corroer os alicerces da nossa sociedade.
É de vital importância que a questão do alcoolismo seja encarada como prioridade nacional, como um problema social, colectivo, uma questão de saúde pública em relação à qual devem ser preparadas e desenvolvidas políticas públicas eficazes, em matéria de prevenção e tratamento.
Este esforço deverá abranger as áreas da educação, da prevenção, da legislação e regulamentação, do controlo da produção, dos preços das bebidas alcoólicas, da publicidade, bem como do tratamento e da reinserção social.
A educação é fundamental para que os cidadãos possam ter consciência dos problemas que o uso de álcool pode acarretar de forma a poderem realizar escolhas conscientes.
Embora não se defenda qualquer tipo de “lei seca” não se deve descuidar o facto de que “sem álcool, não há alcoolismo”, e que é imperioso evitar sua excessiva presença, sobretudo, entre a população juvenil, facilmente susceptível aos apelos publicitários e às sensações e tentações provocadas pelo álcool.
As empresas e demais entidades empregadoras poderão também ter uma actuação de grande relevo nesta matéria, ao considerarem o alcoolismo como uma doença que deve ser prevenida e tratada, desenvolvendo acções de prevenção e encaminhando os possíveis doentes para tratamento.
Diversas instituições têm um papel determinante nesta matéria, em especial as das áreas da saúde, educação e juventude, e estimulo todos os cabo-verdianos, especialmente as igrejas e organizações da sociedade civil, a juntarem os seus esforços a essas entidades no sentido de se constituir um poderoso movimento que tenha como objectivo a luta contra o alcoolismo. A prevenção e o tratamento do alcoolismo em Cabo Verde são actividades que exigem empenho sério e decidido de toda sociedade cabo-verdiana.
Esta iniciativa da Associação Cabo-verdiana para a Prevenção do Alcoolismo, de alertar para o facto de o alcoolismo constituir em Cabo Verde uma urgência nacional, merece toda a nossa solidariedade e todo o nosso empenho. A Associação tem em nós e na Presidência da República um parceiro certo.
Para finalizar, gostaria de endereçar uma mensagem muito especial aos membros do grupo terapêutico do Hospital Agostinho Neto que deixaram aqui seus testemunhos de determinação na luta contra a doença, cujo tratamento demonstraram ser possível, e a consciência clara de que a preocupação com o alcoolismo e seus malefícios é um imperativo com carácter de urgência.
Muito obrigado.
por Jorge Carlos Almeida Fonseca a Sexta-feira, 11 de Novembro de 2011
https://www.facebook.com/notes/jorge-carlos-almeida-fonseca/interven%C3%A7%C3%A3o-em-sess%C3%A3o-organizada-pela-acpa-alcoolismo-urg%C3%AAncia-nacional-dia-10-n/127062087402382
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