quarta-feira, 26 de maio de 2010

ENTREVISTA COM PEDRO PIRES-por ABEL COELHO DE MORAIS e LEONÍDIO PAULO FERREIRA

"Spínola foi completamente derrotado na Guiné"
LISBOA-Combateu na Guiné pelo PAIGC de Amílcar Cabral. Foi primeiro-ministro e agora é Presidente desse Cabo Verde que merece elogios pelo seu apego à democracia. Hoje, Pedro Pires é feito doutor 'honoris causa' pela Universidade Técnica de Lisboa. Aos 74 anos, este homem exemplar fala do seu país, da ligação a Portugal, da lusofonia e até de futebol .

Enquanto combatente da luta anticolonialista e governante que balanço faz deste meio século de independências na África?
Creio que não se deve generalizar porque são realidades culturais e étnicas diferentes, são experiências históricas diferentes. É nessa base que a experiência africana dos Estados independentes deve ser vista, na sua complexidade, na sua dificuldade e também naquilo que podemos dizer ser uma falta de tradição de exercício do poder soberano. Podemos analisar o papel dos partidos que dirigiram os países ou participaram nas lutas de libertação, dos seus líderes e do contexto internacional, não só do contexto africano mas também do mundial.
Mas há casos evidentes de sucesso e casos evidentes de fracasso...
Podemos analisar os sucessos, podemos ver as rupturas, as mudanças de liderança, forçadas ou normais, durante o caminho, e a partir daí ver as diferenças. Entendo que os países que poderão ter maior sucesso, isso depende da cultura e da tradição: se durante a colonização tiveram a possibilidade de adquirir os conhecimentos e instrumentos indispensáveis para a gestão do país; se puderam exercer de alguma forma a gestão do país. Caso não tenha sido assim, é todo um caminho por descobrir. E às vezes as próprias lideranças desconhecem o seu país. Pela sua cultura, pelos locais onde adquiriram o saber, o conhecimento, este nem sempre traduz o conhecimento da própria realidade. Daí que o caminho dos países soberanos africanos tenha sido condicionado por isso. Será que as instituições estatais reflectem a realidade do próprio país ou será uma colagem? Penso que é aqui que estará a grande fraqueza.
O que leva alguém a pensar este é o momento da ruptura, de lutar por uma pátria independente?
Qualquer um está influenciado pela sua vivência, pelo seu país, por aquilo que nota nele, pelo que aí encontra de injustiça, pelo que encontra de bloqueio e nas soluções que se lhe oferecem. É preciso romper o bloqueio da discriminação.
Recorda-se do momento em que tomou essa decisão?
Não... A minha visão é a de que as pessoas crescem, vão tomando consciência da sua realidade, vão tomando consciência de si próprias, e a partir daí chega o momento de decidir. Eu, quando decidi integrar o Movimento de Libertação de Cabo Verde, estava aqui em Lisboa. Nesse momento tinha muitos amigos, pessoas com quem trocava impressões. Portanto, cresci politicamente aqui e foi aqui que tomei a decisão.
Como é que um jovem de Cabo Verde está a estudar em Portugal e, de repente, é guerrilheiro nas matas da Guiné? Nunca tinha estado na Guiné antes?
É verdade, nunca tinha estado. Mas outras pessoas com as quais eu me identificava tinham feito essa opção. E eu faço a mesma no quadro de uma luta comum, no quadro de uma nova visão para África, para o mundo, no quadro da ruptura com o colonialismo. No caso concreto, com o colonialismo português.
Diz-se que a guerra na Guiné foi diferente, que era a única ex-colónia portuguesa em que a guerrilha podia impor a independência. Sentia a vitória próxima?
Não, não tinha ideia de que estava próxima. Tinha ideia de que era possível, mas a ideia da iminência eu pessoalmente não tinha. E estou convencido de que os outros também não tinham. Mas, no momento em que houve aquilo que podemos considerar a ruptura do equilíbrio de forças a favor da guerrilha, sabia que estaria próximo. O que foi a ruptura do equilíbrio de forças? É quando o PAIGC consegue ter mísseis antiaéreos que neutralizaram a força aérea portuguesa. A partir daí reduziu-se a mobilidade das forças portuguesas. Estas, sobretudo as forças especiais, utilizavam como cobertura o avião e o helicóptero na deslocação. A partir do momento em que perdem a mobilidade fixam- -se e, claro, eram obrigados a abandonar grandes espaços. Depois do 16 de Março, nas Caldas da Rainha, creio que a partir daí estava evidente que sim, que o fim estava próximo. A data certa, jamais.
A guerra na Guiné é associada ao general Spínola. Ele era um militar temido pelo PAIGC?
Tenho dúvidas quanto a isso.
Mas era um nome importante na Guiné?
Claro que sim. Spínola construiu e trabalhou a sua imagem de grande militar. Mas, e este é um ponto de vista pessoal, Spínola foi completamente derrotado na Guiné. É desta forma que ele sai da Guiné, é desta forma que alguns dos seus colaboradores próximos também saem da Guiné. Eles foram militarmente derrotados. Se nós tínhamos respeito por ele? Claro, tem-se respeito por qualquer chefe militar, sobretudo aquele que temos à nossa frente.
Era inevitável a ruptura entre Cabo Verde e a Guiné?
Não sei. As coisas evoluem: ou vão para a convergência ou vão para a separação. Entendo que, se assim foi, é porque as coisas estavam a ir para a separação. Do nosso lado, porquê a ruptura? Entendemos que os golpes de Estado devem ser sempre evitados: quem dá o primeiro golpe de Estado justifica o segundo, e assim sucessivamente. E nós dissemos: nessa direcção não vamos.
Esse golpe em 1980 foi o prenúncio do destino trágico de Nino Vieira? Pode ser visto como o início do ciclo de golpes, contragolpes e assassínios na Guiné?
Podia não ser. É complicado...
Que memória tem de Nino?
É complicado estar a tirar esse tipo de conclusões, porque procuro ser seguro naquilo que digo, procuro compreender as razões, não tiro conclusões fáceis sobre esta ou aquela pessoa. Se se quiser, que se faça uma investigação sobre a personalidade da pessoa para chegar a uma conclusão. Agora que o golpe de Estado abre o caminho à violência é evidente. E o mal da Guiné foi o seguinte: não se soube gerir a transição de um movimento de libertação para partido político e também não se conseguiu gerir convenientemente a transformação de um movimento de libertação, de uma guerrilha, num exército regular. Até hoje, a Guiné sofre disso. Para resumir, diria que na Guiné o erro está em que não souberam civilizar o regime. Civilizar entre aspas.
Não existe o receio, atendendo à profunda crise na Guiné-Bissau, de que o problema do narcotráfico possa estender-se na região e afectar a estabilidade de Cabo Verde?
Ninguém está seguro se os seus vizinhos não estiverem seguros, a nossa segurança depende em parte da segurança da nossa região. Daí que haja necessidade de, de um lado, combater o narcotráfico no nosso país, de outro lado, combater o narcotráfico no plano regional. Mas o narcotráfico não é um fenómeno africano nem regional, é mundial. O narcotráfico põe em causa as instituições do Estado de direito e é um poder subterrâneo que quer impor as suas regras. Cabo Verde coopera com vários países e várias instituições, e colocou essa questão da segurança regional e do combate ao narcotráfico em debate. O combate ao narcotráfico tem de ser coordenado e há que ir nessa direcção.
Um elogio que se faz a Cabo Verde é a alternância democrática que conseguiu. O Presidente é disso exemplo. Como é estar no poder como primeiro-ministro, passar pela oposição e voltar a ganhar umas eleições e ser presidente?
É o combate por um sentido de vida. No seguinte sentido: lutei com sinceridade, com lealdade e com empenho para que o meu país fosse independente, trabalhei da mesma forma para que ele avançasse e se construísse o Estado soberano, para se lançarem as bases do desenvolvimento do país. Chegámos depois à conclusão de que era necessário liberalizar a economia e também politicamente o país. E assim foi.
Falou na liberalização económica e política. Pode afirmar que a democracia está estabelecida e enraizada em Cabo Verde?
Penso, pela prova que temos, que é o dia-a-dia dos cabo-verdianos. Isso já não se discute: é cultura, é o hábito. Não vejo a possibilidade de qualquer mudança ou regressão nessa questão, porque é natural.
Aí nada vai mudar?
Nada. Devemos é ter a preocupação da consolidação e aperfeiçoamento das instituições do Estado democrático. Deve haver um esforço no sentido de as tornar mais sólidas e eficientes para que sirvam o melhor possível à sociedade.
Há pouco tempo, o ex-presidente Mário Soares afirmou que talvez a independência de Cabo Verde em 1975 não devesse ter sido feita. Que comentário faz?
Acho que é a forma de o dr. Mário Soares ver as coisas. É uma opinião pessoal e talvez até seja um gesto de amizade e de valorização. Amizade e valorização de Cabo Verde e dos cabo-verdianos.
DN.PT-Combateu na Guiné pelo PAIGC de Amílcar Cabral. Foi primeiro-ministro e agora é Presidente desse Cabo Verde que merece elogios pelo seu apego à democracia. Hoje, Pedro Pires é feito doutor 'honoris causa' pela Universidade Técnica de Lisboa. Aos 74 anos, este homem exemplar fala do seu país, da ligação a Portugal, da lusofonia e até de futebol .

Angola é a grande promessa da lusofonia"
Participa de 27 a 29 no 3.º Fórum da Aliança das Civilizações no Rio de Janeiro. Enquanto estadista africano, quais considera serem no contexto do diálogo das civilizações os desafios mais relevantes ?
É preciso pensar que a guerra já não serve, não resolve os problemas da humanidade e que há uma grande maioria de pessoas que deseja um mundo diferente, ordenado, gerido de forma diferente. É fundamental que se faça a reforma das instituições internacionais, como é o caso das Nações Unidas, para que traduza este novo mundo, com os seus novos actores, porque os actores de 1945 [os cinco membros do Conselho de Segurança] continuam a dominar, mas estão a surgir novos actores, com peso, com ideias e com capacidade de intervenção. É também preciso vencer os preconceitos ancestrais, vencer os factores de desconfiança e abrir perspectivas para relações de confiança e de compreensão entre os povos, entre as culturas, entre as religiões.
Que papel pode a lusofonia, como espaço cultural e como CPLP, desempenhar nesse processo?
Cada um e todos podem dar uma contribuição. Entendo que no espaço da lusofonia podíamos escolher o Brasil para, precisamente, trabalhar para esse novo mundo. O Brasil é um espaço territorial e humano onde se encontra de tudo em matéria de culturas, de religiões, de povos. O Brasil pode representar esse novo mundo em gestação, da mesma forma que considero os Estados Unidos também esse novo mundo em gestação. Veja a esposa do Presidente, a primeira dama dos EUA, Michelle Obama, vive num palácio onde há uma lista dos trabalhadores escravos que construíram aquele palácio. O que devemos é tratar a questão e debater a questão. Vamos ver como será proximamente a realidade angolana, por exemplo. A realidade cabo-verdiana já sabemos que é uma sociedade mestiça, que a sua integração, a sua fusão já se deu. Agora poderá melhorar, mas já se deu.
Referiu Angola porque pensa que é a grande potência emergente do mundo lusófono? Ou seja, o Brasil é a certeza e Angola é uma promessa?
Acho que Angola sim, é uma promessa. Sabe porquê? Para mim, o elemento fundamental nos Estados independentes e para o seu futuro é serem capazes de pôr de pé um Estado soberano, eficaz, eficiente, estratega e inclusivo .
Na sua opinião, Angola está a conseguir isso?
Do meu ponto de vista, vai nessa direcção. Porque, vejamos, faça uma comparação entre Angola e a República Democrática do Congo. E tire a conclusão!
Estudou em Portugal, recebe hoje um doutoramento honoris causa na Universidade Técnica de Lisboa. Que ligação sentimental tem a este país? Costuma ler escritores, jornais portugueses?
Sim. Leio livros e vejo a televisão portuguesa.
Há algum escritor que aprecie?
Não gosto de ler romances, prefiro contos, ensaios. Nesse aspecto, há vários. De toda a maneira, gosto do Saramago, na medida em que a leitura dos livros dele é um autêntico exercício de conhecimento da língua, é muito complicado, a meu ver, mas é um exercício interessante para ver se a gente conhece e domina a língua.

"Não fustiguem Queiroz"
O empate da selecção de Cabo Verde com Portugal surpreendeu-o?
Foi um jogo de treino e nos jogos de treino geralmente não vemos os grandes argumentos das equipas. Mas acho que o treinador de Cabo Verde arranjou bem a defesa. E isso é muito bom, porque vamos poder arranjar o que tem sido a nossa falha nos jogos internacionais e, sobretudo, com os países africanos.
Há muitos jogadores cabo-verdianos que vivem cá. Como é relação com a comunidade emigrante?
A diáspora cabo-verdiana é uma coisa interessante. Na equipa portuguesa há, no mínimo, três: Nani, Rolando e Miguel. Poderia haver outro se viesse o Eliseu. Na equipa da Holanda há um cabo-verdiano. Na equipa da Suíça há outro. São cinco que estarão no mundial.
Já davam para meia equipa...
Não é tanto isso. De todas as maneiras, há uns 70 cabo-verdianos que jogam aqui em Portugal, um bom número para se encontrar uma equipa razoável.
Está satisfeito, mesmo fora do futebol, com a integração dos cabo- -verdianos em Portugal?
Certamente que sim. A cultura cabo- -verdiana, sobretudo através da música e da gastronomia, faz parte do quotidiano lisboeta. Agrada-me.
Voltemos ao futebol. Acha que a equipa portuguesa tem hipóteses?
Eu não tenho competência nessa matéria para estar a transformar o meu desejo em realidade. O que os portugueses devem fazer... Escolheram um treinador, deixem que o homem trabalhe, não o fustiguem.
DN.PT-Por ABEL COELHO DE MORAIS e LEONÍDIO PAULO FERREIRA

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