Escrevo de Mindelo, a agradável cidade da ilha de São Vicente, uma das que formam Cabo Verde. Aproveito as férias na TV Record para acompanhar uma das equipes da revista Nova África, que segue daqui para São Tomé e Príncipe.
(Se você perdeu este capítulo, sou diretor editorial do programa, função que desempenho na condição de assalariado da Baboon Filmes — produtora paulista dos empresários Henry Ajl e Markus Bruno que ganhou uma concorrência pública competindo com empresas de São Paulo, do Rio de Janeiro e de Brasília).
Estivemos em regiões remotas do país, que fica no meio do oceano Atlântico, entre a costa do Brasil e a África. Aqui teve início o processo de miscigenação entre europeus e africanos que resultou no tipo humano que é comum a Cabo Verde e ao Nordeste brasileiro. Mas isso fica para ser contado no programa.
Achei curioso que na lanhouse que uso neste momento a TV está ligada… na TV Record. Pelo que ouço (não consigo ver, só ouvir a TV), trata-se de um programa de João Cleber, em que ele apresenta pegadinhas e dá um prêmio de 500 euros aos telespectadores. Mais cedo, acompanhei a disputa entre os usuários da lanhouse pelo controle remoto: alguns queriam ver futebol europeu e outros a novela Paraíso Tropical, da Globo.
Em Cabo Verde a população fala crioulo (95% português, 5% palavras de idiomas africanos). O português como falamos no Brasil é coisa dos letrados.
A chegada do Brasil a Cabo Verde é razoavelmente recente: se aprofundou com a disseminação das antenas parabólicas e com o acesso à energia elétrica (grande parte dos moradores do país ainda não tem acesso à água, luz ou rede de saneamento básico).
Mais cedo, em um supermercado, o sistema de som reproduzia uma rádio local que tocou Roberto Carlos e, em seguida, Leandro e Leonardo. Mais cedo, em um café, ouvi uma guarânia cantada por uma dupla brasileira que não consegui identificar.
Na porta do supermercado, um grupo de imigrantes asiáticos, com os quais não consegui me comunicar, se agachou para fazer uma refeição rápida com o que acabara de comprar.
O comércio, quase todo, é dominado por chineses. Eles chegam com suas mercadorias baratas e, apesar do ressentimento de alguns, são saudados pelos caboverdianos pobres, que agora podem calçar toda a família e comprar os uniformes escolares.
Meu ponto é que aqui, em Cabo Verde, vejo imagens que já vi em outros países da África: nos espaços deixados vagos pelos Estados Unidos e a União Europeia, vão se construindo alianças formais e informais entre os “pobres”. Aqui, só dá Brasil e China.
Três caboverdianos estão neste momento bem diante da TV, hiptonizados pelo conteúdo inventado aí no Brasil. Isso não é necessariamente bom para eles. Pode ser comercial e culturamente interessante para nós.
Curiosamente, no dia anterior fiz uma viagem com um jornalista americano, de uma influente editora de Nova York. Como alguns de vocês sabem, vivi quase 20 anos nos Estados Unidos. Mas foi a primeira vez que constatei in loco o “deslocamento” cultural de um americano: um discurso repleto de clichês e uma imensa dificuldade de compreensão das mudanças à nossa volta.
Ele queria ver “a América” em Cabo Verde, talvez para se sentir reconhecido. Viu os chineses. E a TV brasileira.
Este adendo foi escrito no dia 15 de abril, depois que completei a viagem, a partir de comentaristas que educadamente se dirigiram ao site: Desculpem minha ignorância. Admito que sou ignorante a respeito de muitos assuntos. Mas estou sempre pronto a aprender. Sempre! Os quatro programas que gravamos em Cabo Verde (e que vão ao ar na TV Brasil) serão uma celebração da diversidade, da miscigenação e da incrível capacidade dos caboverdianos de terem feito tudo o que fizeram apesar da água não ser abundante no país. Gravamos nas praças conectadas, mostramos o incrível programa de acompanhamento da epidemia de dengue em tempo real, entrevistamos o Bana em Lisboa, a Cesária em Mindelo e escalamos o vulcão do Fogo. Ouvimos médicos, músicos, historiadores. Minha referência ao crioulo (que, como me ensinou a Cecília, é um nome considerado pejorativo em relação ao idioma, embora seja de uso corrente) diz respeito ao fato de que o português não é falado em Cabo Verde como é falado no Brasil, o que pode parecer óbvio aos caboverdianos mas não é óbvio para os brasileiros, que se surpreendem ao descobrir que nem todos os moradores de Cabo Verde, São Tomé e Príncipe, Angola, Moçambique e outros países lusófonos dominam o português. Não há demérito nisso. Pelo contrário, acredito ser simbólico da resistência e da força dos povos locais, que souberam preservar ou construir suas próprias identidades. Não confundo iletrado com inculto, nem “falar português” com sabedoria. Quanto ao dado de que 95% das palavras são originárias do português e 5% têm outras origens me foi passada por um caboverdiano, aparentemente tão mal informado quanto eu a respeito. Mas a ignorância, essa é toda minha!
Acompanhem abaixo um pequeno trecho de nossa gravação com Cesária Évora, em Mindelo:
http://www.youtube.com/watch?v=r7aubyWr9Kc&feature=player_embedded
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