quarta-feira, 7 de abril de 2010

RESSONANCIAS47-POR JORGE CARLOS FONSECA

EUCLIDES FONTES, o amigo e companheiro, o fraccionismo e uma história ainda por contar, o Rap/Hip-Hop crioulo em Santa Filomena

1. Como temos o dom, a tentação, de refazer a história ao nosso jeito, na medida e no grau do nosso interesse imediato! Fazemo-lo não apenas para projectar e engrandecer os nossos heróis reais ou virtuais, em momentos de política conveniência (eleitoral) e de escritos de ocasião, mas igualmente em tempo de registo ou louvação de pessoas amigas ou que achamos dever reconhecer na altura da morte. Fazemo-lo sistematicamente, em todos os quadrantes políticos conhecidos, de muitas perspectivas e ângulos de análise e de informação. Fizemo-lo ontem e continuamos a fazê-lo hoje , num tom e numa postura quase naturais, diríamos, quase inquestionáveis, neste nosso jeito de plácidos e acomodados titulares de direitos de cidadania cívica (de vez em quando, tornamo-nos aguerridos, não raro violentos no verbo, destemidos senhores de saber e ciência vária - a roçar o imprudentíssimo facilitismo de impreparados críticos e comentadores, senão analistas -, sobretudo quando podemos estar anónimos em sites e blogs, ou sabemos, quando sabemos, estar a coberto de qualquer fiscalização técnica, científica ou outra).
2. Vem isto a propósito do desaparecimento físico de Euclides Fontes, o amigo e companheiro da clandestinidade e dos primeiros anos da independência, militante incansável e exigente da construção de um Cabo Verde sonhado à medida de valores, modelos, referencias históricas, politicas e ideológicas nem sempre resistentes ao Tempo. Euclides Fontes, talvez (a par de um Alexandre Ramos de Pina e mais alguns) o mais rigoroso e radical na disciplina que se impunha e impunha aos outros, nos horários e na preparação dos eventos, na cultura de uma ética de procedimentos - colectiva e individual - dificilmente realizável, mas também na solidariedade com os companheiros e amigos. Euclides Fontes, que – relatou-nos a imprensa – foi um dedicado militante pela causa da independência, o que é um facto. Euclides Fontes – asseveram,-nos os media locais, com essencial acerto – foi um activo defensor da democracia pluralista que acabou por triunfar no nosso país e se institucionalizou pela via de uma constituição fundante e de ruptura. Mas olvidou-se o militante de convicções socialistas revolucionárias que também foi, o activista que, com muitos outros, se rebelou contra o modelo, as práticas, a cultura organizacional, do concreto regime de partido único instaurado em Cabo Verde (a chamada democracia nacional revolucionária), envolvendo-se, com todas as ainda pouco conhecidas consequências, para a vida pessoal, profissional, familiar, no apelidado movimento fraccionista ou trotskista.
Nas vésperas das presidenciais de 2001, estive num encontro público, em Brockton, com Euclides. No seu jeito frontal, perguntou-me, num tom amistoso e “provocatório” se eu também me tinha convertido definitivamente à democracia liberal e ao capitalismo. Asseverou-me a continuidade de suas convicções “socialistas” e manifestou-me o seu apoio eleitoral, sem deixar de me esclarecer que o fazia não sendo eu o “seu” candidato ideal mas, sim, o “mais aceitável”, melhor, o “menos inaceitável”. Rimo-nos às gargalhadas, felizes com o reencontro.
3. Envolvimento que, seguramente, potenciou ou de alguma forma favoreceu o seu exílio nos EUA (sabemos o como, o porquê e o quanto, entre nós, se nega este fenómeno ou ele é matéria de tentativa de ridicularização. Às vezes, o que, noutras paragens, seria um aclamado romântico herói, transforma-se caseiramente quase num vil e cobarde traidor pátrio). Exílio que lhe terá proporcionado também oportunidades novas e coisas boas, como a possibilidade de fazer estudos universitários de economia.
4. Sem dúvida um esquecimento cómodo umas vezes, politicamente correcto, outras vezes, amiúde atravessado por juízos, preconceitos ou avaliações inculcados ao longo dos tempos por força de um misto de ignorância, de mitigada existência de uma reflexão crítica e objectiva dos factos, das pessoas e dos contextos políticos, mas, sim, também de intencionados e persistentes cálculos e propósitos ideológicos. Apagamento, distorção, desconhecimento, afinal, de um período da história do país que teve, de um lado e de outro, protagonistas, rostos, histórias, excessos, vítimas, feridas e cicatrizes, factos e inventonas, heróis e vilões, sem esquecer reflexos inarredáveis no percurso imediatamente a seguir do nosso devir colectivo.
Num segundo reencontro com Euclides Fontes, há cerca de 2-3 anos, por ocasião da apresentação pública, na Praia, do livro de Dionísia Velhinho Rodrigues, “Na minha terra também se ama”, ele falou-me, a mim e ao José Tomás Veiga, de quem era amigo de peito, de uma obra que estava a escrever e estaria numa fase adiantada, precisamente sobre o período a que tenho estado a referir-me, melhor, de uma história dentro da história conhecida e divulgada da luta de libertação nacional. Estará a obra finda?
5. Uma época da nossa vida que já foi objecto de alguns (muito poucos) escritos, opúsculos, livros, comentários, registos jornalísticos, mas quase invariavelmente marcados pelo posicionamento ideológico intransigente, pelo interesse político imediato, individual ou de grupo, ou, ainda, pela ligeireza de análise de quem se deixa levar pelo mais simples, mais fácil e visível. Sobremaneira, e exceptuando talvez, além de um ou outro, o caso de FAFALI KOUDAWO e o seu “Cabo Verde e Guiné-Bissau – Da democracia revolucionária à democracia liberal”, pouco se conhece e se divulgou, com objectividade, do que aconteceu nos anos de 78 a 80 em Cabo Verde, muito pouco se escreveu, se estudou e se analisou, com serenidade e isenção, do que se seguiu àqueles anos, nomeadamente no que toca aos elementos de ligação, de condicionamento, de explicação ou, de algum modo, de cabal compreensão da transição democrática indígena, do contexto em que ela se realizou, ou até dos instrumentos organizativos, dos actores e protagonistas, que foram sendo criados ou se apresentaram ao longo dos diferenciados momentos que antecederam a irrupção da democracia no plano interno.
Fomos ficando com meias-verdades, ilusões vendidas e verdades interinas, mistificações muitas, versões redutoras e singelíssimas das realidades, omissões e distorções, seja pelo desconhecimento, seja pela intenção de obter ganhos políticos efémeros, pessoais ou de grupo, histórias parcelares ou manipuladas, ao sabor do interesse de uns e outros, para não falarmos da história oficial, aquela que é ensinada nas escolas.
Há-de vir o tempo em que assumiremos a nossa história por inteiro, que afinal nem começa com a independência, nem com a democracia liberal.
6. No fim-de-semana que passou pude, na companhia de amigos (o Carlos Pina, o Nelson Brito, o Elísio Cardoso, o Isidoro Gomes), visitar, depois de um encontro mais alargado e de um almoço-convívio, o bairro de Santa Filomena, no concelho da Amadora.
Bairro habitado por uma importante comunidade de cabo-verdianos, designadamente por centenas de jovens nascidos em Portugal, mas que mantêm uma impressionante ligação cultural a Cabo Verde, sem nunca terem visitado o país de seus pais, mesmo quando o evento principal a que fomos convidados era constituído por uma sessão de Rap/Hip-Hop, enquadrada no Movimento Vários Talentos em Actuação, e organizada pelo RDS Rapa di Santa, tendo como principal protagonista o MC Hélder. Não sendo nós um conhecedor ou apreciador de tal género musical – e nenhum eventual envolvimento político-eleitoral nos levará a deixar de manifestar, com autenticidade, os nossos valores, percurso ou preferências a todos os níveis – não podemos silenciar o facto de termos ficado muito “tocados” com o ambiente vivido, com jovens modernos e integrados em certos valores e hábitos (o vestuário, os penteados, as opções futebolísticas) mas que fazem rap num crioulo denso e autêntico e manifestam e cultivam, num espaço social e cultural condicionado por factores muitos que geram e marcam um território de exclusão social, uma forma de estar-com-os outros, de receber e de expressar morabeza que, aqui entre nós, vai minguando e se metamorfoseando em coisa diferente e menos humana.
7. Um tempo e um espaço esses que ainda podem propiciar que jovens como José Fernandes façam um curso de direito, e nos dão, de alguma forma, a medida, ainda desconhecida nos seus contornos essenciais, do que somos como nação e como povo e, sobretudo, nos levam a reflectir sobre o quanto ainda está por realizar de políticas de efectiva, e não apenas discursiva, ligação e integração ilhas-diásporas.
A todos os que acabamos de mencionar, mas igualmente aos amigos Barradas, Lourdes, Gustavo, David, Marcos António, Dâmaso, Alberto, Francisco, Martin, Domingos, Ivo, Mokuna, Emílio, e à Paula Tavares, jovem activista comunitária do bairro, devo aqueles momentos de rica comunhão de sentimentos e cultura. Registo que não poderia ainda olvidar o Balão, o Funa, o Ney, o Virgílio e o Tavares, o Hermes, Valdir e Yuka, a Edna, a Sofia, a Elsa, Manuel Andrade, o Carlai e a D. Canta.
jcafa@yahoo.com/jcfonseca@cvtelecom.cv

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