A propósito do «dia do professor» - Bolonha, o nosso ensino superior, os liceus e o mercado («Deus reside no pormenor»?!), equívocos ideológicos e verdadeiros mestres ( Dona Ivete, Menina Anete, professor Câncio, Dona Tanha e a Menina Zidória )
1. Lemos num periódico nacional que Cabo Verde irá «aderir» ao chamado processo de Bolonha. Não sabemos se a informação é exacta ou se ela terá sido retirada do contexto discursivo do responsável governamental que é mencionado na notícia (estranhamente, não o ministro do ensino superior mas o da educação), mas devemos presumir que as notícias editadas têm fundamento de verdade.
Até hoje terá havido entre nós um ou dois encontros muito localizados e restritos para debate do tema que, noutras paragens, se tem revelado objecto de polémicas várias e de uma avaliação nem sempre consensual. O ensino superior em Cabo Verde está longe de estar numa situação de estabilidade, em termos de percurso feito e de opções de modelos institucionais, é fenómeno relativamente novo e, visivelmente, mostra-se atravessado por fraquezas de toda a ordem, da qualidade do ensino ministrado à consistência das estruturas curriculares, passando pela fraca produção científica ou técnica das instituições existentes e pela quase ausência de efectivas e consistentes instâncias de fiscalização científica e técnica, sem falar. Há estabelecimentos de ensino superior que ministram cursos para os quais não estão minimamente apetrechados ou vocacionados, nem do ponto de vista de equipas docentes, nem de uma perspectiva de meios técnicos e materiais. Há docentes no ensino superior e em determinados cursos sem os requisitos mínimos de qualidade e preparação – científica, pedagógica ou técnica - para o efeito. Há, reconhecidamente, em alguns casos, verdadeira importação de «lixo universitário» sem que se veja alguma medida de contenção ou de prevenção do fenómeno. Há equívocos tremendos – juntos de responsáveis políticos mas igualmente no seio da sociedade crioula - sobre o papel e função das universidades e do ensino que neles deve ser ministrado, que, aliás, fazem compreender a complacência e a indiferença com que os poderes e as instâncias sociais e culturais acompanham e avaliam o estado actual do ensino superior, designadamente o universitário. Há – temos de o dizer, frontalmente – equívocos outros, traduzidos num, hoje, inaceitável preconceito que marca políticas nacionais e até de cooperação (falámos disso, há cerca de dois anos e tal, num colóquio sobre «cooperação Europa/África sobre o ensino superior»), e que se funda e estriba numa espécie de fetichismo do público, do estatal, esquecendo-se o que nos parece ser o essencial(repetindo-nos, é verdade):
O critério decisivo deverá ser o da qualidade global – científica, técnica e humana – das instituições: da qualidade do ensino ministrado e da investigação realizada; da relevância da sua investigação e produção técnica e científica para amplificação do saber e, inclusivamente, para a condução de políticas públicas; da sua influência na comunidade académica, nas instituições de «policy-making» e da sociedade civil. Enfim, dos resultados obtidos a esses níveis e do valor que trazem para a comunidade em que estão inseridas.
2. Se a «democratização», a expansão e a «localização» do ensino superior podem trazer, à partida, algumas vantagens ao país e aos cabo-verdianos – custos menos elevados; ultrapassagem de condicionamentos hoje fortes à oferta de vagas e bolsas; adequação do ensino e da investigação às realidades nacionais e locais - , não poderão ser ignorados os factores atrás mencionados e a necessidade premente de se pôr alguma «ordem» no sector, sob pena de aquelas aparentes vantagens se transformarem, a prazo, numa perigosa ilusão ou até num pesadelo nacional (em termos de resultados).
As primeiras experiências e tentativas de avaliação das instituições existentes estão em curso, sem que, ainda, a comunidade tenha conhecimento dos seus resultados. Ninguém ignora que se torna prioritário e urgente, num momento em que se deixou a maré encher e se acreditou que a «massificação» de per si constituiria um trunfo para o sistema educativo indígena, proceder a uma serena, objectiva e cuidada avaliação do percurso feito, para nele serem introduzidas alterações e correcções de forma a impedir situações incontroláveis. Sabe-se que está em curso quase uma primeira análise institucional e crítica do ensino superior que temos.
3. Neste quadro, pensar em «aderir» ao processo de Bolonha, sem um debate generalizado sobre o que é, os resultados que tem dado lá onde ele foi aplicado, as críticas às vezes impiedosas de que tem sido objecto (em direito, que conhecemos melhor, os resultados têm sido vistos, em determinados países, como desastrosos), as exigências – humanas, materiais, técnicas – impostas para um seu razoável desempenho ou os pressupostos «ideológicos» ou teóricos e políticos (falamos de opções de políticas educativas) em que assenta Bolonha, seria, no mínimo, imprudente e inadequado.
Esperemos, pois, que o «anúncio», a notícia, que a nossa «presunção» não sejam confirmados.
4. Hoje falamos de temas atinentes à educação. Temos ouvido declarações de responsáveis governativos sobre propósitos (ou já decisões?) de transformar o ensino liceal em instância de formação de jovens para … o mercado de trabalho. Numa espécie de ensino técnico e/ou profissional. Não é claro para nós se a ideia é integrar componente técnica nesse ensino ou se, definitivamente, ela se traduz em tecnicizar os liceus e o ensino que, tradicionalmente, neles é ministrado.
Trata-se também aqui de uma opção que não está isenta de dúvidas, de reservas muitas, e que mereceria discussão, reflexão aturada, pois poderia constituir solução totalmente inadequada, apressada e expressão mais de cálculo ideológico do que de intenção teórica e sustentada em vectores científicos, sociais e, sobremaneira, culturais. Sejamos claros: em nosso entender, e de alguma forma, o país que somos, no que de melhor somos e temos, deve-se precisamente àquilo que uma tal ideia parece pretender, a relativização, senão mesmo a castração, da formação geral, cultural e humanista que, tendencialmente, se procura alcançar no ensino secundário liceal. Melhor: os desígnios justificadores de uma opção fundante [numa antiga crónica, dizíamos, a propósito de uma obra de G. Steiner: «… Sabemos que, em Cabo Verde, ninguém redigirá tomos fenomenológicos à mesa de um bar…, como igualmente não será difícil perceber que originariamente (a gesta inicial) não somos filhos de Descartes, Kant ou Heidegger. Mas será um absurdo dizer, que também nós, cada um de nós, teremos sido tocados pela «herança do hebreu» («o desafio monoteísta», «a definição da nossa humanidade enquanto diálogo com o transcendente», «o conceito de um Livro supremo», «a noção do direito como algo inextricável em relação aos mandamentos morais»] ?!»
A outra formação, a de vocação mais profissionalizante, mais técnica, é importante, decisiva, diríamos, mas a ser feita noutro espaço.
Pelo menos, aceite-se que um tal propósito não será dotado de uma qualquer verdade axiomática e que mereceria discussão. A propósito, onde estão as associações de professores? As escolas e os docentes? Os partidos políticos e os seus «responsáveis» pelo pelouro da educação? Os deputados? As ONG?
O problema não é meramente técnico, assunto do governo ou tema de educadores. Estamos perante opção que tem a ver com o nosso modo de ser e estar com os outros.
5. Comemoramos no dia 23 o «dia do professor». Não seria interessante e útil que a «agenda» incluísse debates sobre temas tão actuais e decisivos, para além dos legítimos, habituais e agradáveis almoços, passeios e jantares?
E porque do dia do professor falamos, uma homenagem aos grandes e competentes professores primários que muitos de nós tivemos, com métodos naturalmente hoje inadequados, com meios escassos, mas que, com enorme profissionalismo e sentido de exigência, transmitiram a gerações de cabo-verdianos uma formação humana e técnica simplesmente notável. Em homenagem a muitos deles (a Dona Lourdes Miranda, os professores Augusto Barros e Júlio Teixeira, entre muitos outros), refiro os que foram nossos professores inesquecíveis: a menina Zidória, a Dona Tanha, a menina Anete, o professor Câncio e a Dona Ivete.
6. O que é feito da Constituição revista?!
JORGE CARLOS FONSECA-jcafa@yahoo.com
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