domingo, 15 de novembro de 2009

EXPRESSO DE PORTUGAL ENTREVISTA CARLOS VEIGA


Carlos Veiga: "Quero ser primeiro-ministro de Cabo Verde"
Carlos Veiga, antigo chefe do Governo cabo-verdiano, está de volta à política activa. Reeleito (depois de dez anos) para a presidência do partido que fundou nos anos noventa, o Movimento para a Democracia (MpD), Carlos Veiga tem um objectivo claro: candidatar-se à chefia do Governo nas eleições legislativas de 2011. Para Carlos Veiga, está categoricamente encerrado o capítulo presidencial. "Está fora de questão, não me vou candidatar à presidência", disse ao Expresso. Candidato duas vezes a Presidente, perdeu-as para Pedro Pires, líder histórico do PAICV.
"Foi um caso de eleições fraudulentas", disse o antigo primeiro-ministro, que esteve em Portugal lançar a sua biografia política (Carlos Veiga - o Rosto da Mudança em Cabo Verde, edições Alêtheia) e retomar contactos. Para Veiga, o essencial agora é o Governo: "Neste momento, o pais precisa sobretudo de um bom Executivo, que faça e seja capaz de fazer com visão e abertura".

Este livro é o relançamento da sua vida politica?
Não era para ser, mas sim para dar conhecimento de um processo de transição politica que correu bem, do nosso ponto de vista, e que entendi devia ser conhecida pelas gerações mais novas. Mas acabou por coincidir com o regresso efectivo. Desde 11 de Outubro estou de novo na presidência do MpD e já fizemos a nossa Convenção. Estou outra vez de alma e coração.
Porquê este regresso?
A política para mim é tentar servir o meu país e a conclusão a que cheguei é que a forma como as coisas estão a evoluir em Cabo Verde não é boa. Estamos a perder oportunidades fundamentais de desenvolvimento e impõe-se uma nova alternância política.
Perder oportunidades em quê concretamente?
Tivemos um "boom" na procura turística nos últimos cinco-seis anos e perdemos a oportunidade de através dele haver crescimento económico em termos de emprego, e consolidação do tecido empresarial. Devíamos ter criado condições de segurança, nomeadamente jurídicas, ordenado e requalificado o país e construido uma administração competente que se apresentasse ao empresário/investidor como parte da solução dos problemas e não ela própria um obstáculo. Agora a crise bateu fortíssima e não se tomaram medidas a tempo que servissem de incentivo para que as empresas continuassem.
Mas o crescimento continua...
Um crescimento de pouco mais de 3,5%. A situação não é fácil, o orçamento é eleitoralista, com um défice de cerca de 12%, praticamente o triplo do que está estipulado no Acordo de cooperação cambial. Mas mesmo o défice é nominal, porque esconde os subsídios elevadíssimos que estão a ser dados a algumas empresas públicas, não porque sofram efeitos da crise, mas por má gestão.
Quando saiu do Governo, em 2000, disse que era fundamental a alternância
São 10 anos outra vez, estamos a terminar este ciclo.
O MpD tem aqui uma oportunidade?
Tem todas as condições. É a única alternativa e de alguma forma está a corporizar as esperanças de muita gente. Em 2008 tivemos eleições autárquicas, que ganhámos: 77% da população está sob a jurisdição dos municípios que ganhámos e sentimos que há na sociedade um grande descontentamento.
Vai candidatar-se a primeiro-ministro, não à presidência?
A primeiro-ministro, é o mais importante agora. O país precisa sobretudo de um bom Governo, um Executivo que faça e seja capaz de fazer com visão e abertura. É muito claro para mim, não me vou candidatar à presidência. Está fora de questão.
Vai enfrentar portanto o actual primeiro-ministro, José Maria Neves?
Sim, ele candidatou-se e ganhou as eleições para a presidência do PAICV, provavelmente é isso que vai acontecer.
Vai ser uma batalha dura.
É sempre bom para a democracia, quando há a possibilidade de optar por duas pessoas fortes.
Sente um certo apelo pela luta política?
O MpD viveu desde 2000 um processo de cisões e divisões e mais recentemente o processo oposto. Mas ainda havia pontas soltas, para muitos a minha presença pode ajudar a juntar essas pontes e fazer do MpD um partido forte e mobilizador. Penso que em alguns casos perdemos as eleições porque aqueles que são nossos não foram votar porque estavam desagradados com essas divisões. Isso explica também o entusiasmo de agora com o meu regresso - até uma euforia bastante grande que vai ser preciso temperar porque vai exigir muito trabalho ganhar as próximas eleições.
E quem é que o MpD vai apresentar como candidato presidencial?
Não apresentamos, apoiaremos uma candidatura individual. Ainda não nos decidimos sobre essa matéria, há várias pessoas próximas do nosso círculo. Até Março tomaremos uma posição.
Na sua biografia, fica claro que perde as presidenciais por fraude...

Sim, na segunda vez foi ainda maior. Ainda bem que se deram passos para a corrigir, fez-se um novo recenseamento a partir de revisão profunda do Código Eleitoral. As fraudes fizeram-se sobretudo nas comunidades emigrantes. Agora discute-se a revisão do Código no que diz respeito ao recenseamento e à votação nos países de emigração. Se não se chegar a entendimento cria-se a situação complicada, porque há que evitar que aconteçam de novo as situações escabrosas que ocorreram.
No final do seu segundo mandato, disse que só faltou fazer "a desmontagem ideológica". Hoje Cabo Verde já está "desmontado" ideologicamente?
Passámos 15 anos de regime de partido único que deixa marcas profundas na consciência das pessoas, na prática da administração, das empresas e em toda a sociedade. Pensámos de forma naif que os ideais da democracia acabariam por se impor por si próprios, que não era preciso o combate ideológico, ideias como o Estado está primeiro que o homem ou que o interesse das pessoas e empresários é mau em relação ao interesse publico. Nos destruímos as instituições do regime do partido único e construímos novas, mas não se fez esse combate. Por isso a nossa moção de estratégia bate intensamente na diferenciação ideológica entre os dois principais partidos. Nós pomos o homem primeiro, eles põem o Estado, nós somos descentralizadores, eles são centralizadores, somos pela economia e que haja rendimentos e recursos a circular, eles são pelos cofres do Estado sempre cheios, mesmo que na economia não haja dinheiro. Para nós o homem é importante, daí que os custos com a educação sejam um investimento estratégico, enquanto para eles é uma despesa.
Está em curso revisão constitucional...
Está difícil. A revisão foi despoletada porque o Governo apresentou um pacote sobre a Justiça (Estatuto dos Magistrados, organização judiciária) que o MpD entendeu como insuficiente. O modelo que temos de Justiça está esgotado, temos de mudar, a nossa Justiça bateu no fundo, porque morosidade é imensa, há uma desconfiança séria sobre os seus órgãos de cúpula porque são constituídos na base de escolhas politica, por outro lado a estrutura não garante a igualdade de oportunidades de acesso ao sistema, enfim, é preciso uma reforma profunda. É uma revisão constitucional pontual e não há consenso sobre como neutralizar a intervenção dos órgãos políticos na composição dos órgãos de Justiça.
E não vai haver acordo entre o MpD e PAICV?
Nós temos flexibilizado as nossas posições. Aceitámos que o Presidente nomeie o presidente do Supremo Tribunal de Justiça, mas sob proposta do Conselho Superior da Magistratura e nem isso é aceite. Não confiamos nisto, porque a prática tem mostrado que não há balizas.
E porque não colocou um outro modelo quando fez a revisão da Constituição (1999)?
Foi a pratica que nos mostrou ao longo destes 10 anos que o modelo não está a responder. Faliu, caducou.
E quanto à questão da língua (que o crioulo seja considerado língua oficial) é a favor?

Fomos nós que pusemos na Constituição que a língua oficial é a portuguesa e que o Estado devia promover esforços para que a língua cabo-verdiana fosse também oficial em paridade. Somos culturalmente um país bilingue, falamos o português e o crioulo e não temos problema nenhum que as duas línguas sejam oficiais. Para ser língua oficial, os textos oficiais têm q ser escritos em crioulo, as aulas dadas em crioulo, a administração pública trabalhar em crioulo, e não nos parece que isso tenha sido preparado. Chegou-se a uma redacção em que os dois idiomas são línguas oficiais em paridade e que o Estado tem de continuar a fazer esforços para que a língua cabo-verdiana possa ser lida e entendida por todos.
Qual é o papel e o lugar de Portugal em Cabo Verde?
Tem um lugar cimeiro e especial. As relações óptimas em todos os domínios, poderá haver áreas em q se desenvolvam ainda mais, e que em regra ultrapassam as contingências de governo ou de partidos, ninguém as põe em causa. Há uma cooperação bastante intensa nos vários domínios.
Qual é a sua opinião sobre a parceria estratégica com a União Europeia?
O grande obreiro dessa negociação chama-se Gualberto do Rosário (o primeiro-ministro do MpD que sucedeu a Carlos Veiga) e, do lado da EU, João de Deus Pinheiro. Vem a concretizar-se agora num processo normal, numa parceria especial.
E Cabo Verde aspira a algo mais institucional?
Eu diria que sim em alguns aspectos. Por exemplo, poderíamos aceder aos órgãos da comunidade em matéria de defesa dos direitos humanos seria bom. O acordo de parceria teria que ser mais institucionalizado para que certos passos possam ser dados. Não estou a criticar o Governo, estamos no princípio.
É uma área de consenso político?
Sem dúvida. Quando lançámos a ideia não era, mas hoje é e ainda bem.
A política externa também? Mesmo as relações com a Líbia?
Sim, é consensual. Quanto à Líbia, tem relações com todo o mundo, porque razão Cabo Verde não devia? Se investidores líbios pretendem investir no país, porque não?
E quanto ao tema da segurança e da NATO?
Também é consensual. Os exercícios da NATO foram consensuais entre todos os partidos. Compreendemos muito bem a importância estratégica de estarmos ligados a uma organização como NATO. O país não tem condições sozinho para se defender, nem para fazer a luta contra toda a espécie de tráficos, de drogas, pessoas e outros, que utilizam uma região muito perto de Cabo Verde, as nossas águas inclusivamente. Temos de estar ligados a um parceiro que nos dê segurança, por alguma forma de acordo.
Estão proibidas as bases militares em Cabo Verde na Constituição
Mas devia ser revisto. O MpD está a propor a revisão desse ponto em especial.
Encararia a criação de uma base militar americana por exemplo?
Teríamos que estudar as condições todas, mas não excluiríamos essa hipótese
Qual é o principal problema de segurança de CV?
O narcotráfico, sem duvida, mas também o tráfico de pessoas. Muitos dos que querem emigrar de Africa passam por lá, em condições terríveis de exploração, e criando-nos problemas difíceis.
Vai enfrentar José Maria Neves nas urnas. Que pensa do seu Governo?
A governação do PAICV falhou nos principais objectivos. Prometeu um crescimento de dois dígitos e está a pouco mais de 3,5%, que depende das remessas de crescimento. Bastam essas remessas para a economia crescer isso. Podemos dizer que da política do Governo resultou zero de crescimento. Também prometeu desemprego abaixo dos dois dígitos, está em 22% em média, em 46% entre os jovens e em 25% entre as mulheres. Quem falha nestas metas não pode dizer que triunfou. A crise não explica tudo, o problema está nas políticas seguidas, ficaram reduzidas ao turismo mas não foram coerentes e acabaram por fazer definhar outros sectores, agricultura, pescas, industria ligeira.
Mas Cabo foi o único país do mundo que deixou de considerado menos avançado para passar a rendimento médio?
Mas isso é normal, Cabo Verde tem crescido sempre, mas tem de crescer mais. O desemprego é a mãe de um conjunto de problemas sociais graves, a pobreza, a delinquência juvenil. Falhámos no sector da energia, produção e distribuição, estamos a falhar na Justiça, no sistema de transporte inter-ilhas, segurança.
Acredita que há petróleo em Cabo Verde?
Se houver e for passível de exploração económica, todos ficaremos satisfeitos, mas porque o assunto é sério, deve ser tratado de acordo com as regras - é um bem de domínio público cuja gestão tem de ser decidida pela Assembleia Nacional. Já temos experiência que às vezes essas situações ficam opacas, dando origem a complicações, que acabam por transformar um produto que devia ser um factor de desenvolvimento num factor de grandes problemas. Não queremos a maldição do petróleo e por isso convém que seja tudo feito de acordo com as regras.
Entrevista publicada na edição do Expresso de 14 de Novembro de 2009

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