domingo, 8 de novembro de 2009

EXPRESSO DAS ILHAS ENTREVISTA NUNO MANALVO


Nuno Manalvo: “Carlos Veiga é uma referência para os democratas de todo o mundo”

O politólogo português, Nuno Manalvo, é autor da primeira biografia política sobre Carlos Veiga, apresentada há poucos dias na Praia. Nas suas palavras, a ideia de escrever o livro surgiu da admiração política e pessoal que tem por Carlos Veiga, "um exemplo de político raro e muito difícil de encontrar paralelo na história da política africana". Na nossa conversa Manalvo admite que não foi uma ginástica fácil, mas a única possível, quando se quer escrever um livro com credibilidade que tenta ser isento em relação à figura do biografado, apesar da confessa admiração. Daí que, apesar de promover os ideais do biografado, reconhecer o papel histórico dos pais da independência do país. "Sem essa independência, não haveria depois o enquadramento para a evolução de um regime de partido único para o multipartidarismo"
 Expresso das ilhas - Como surgiu a ideia de escrever uma biografia sobre Carlos Veiga?
Nuno Manalvo - Eu já tinha escrito a biografia política sobre Francisco Sá Carneiro. O ano passado numa reunião que tínhamos tido nos Estados Unidos, em que estava eu, o Dr. Carlos Veiga e outros amigos, e teorizávamos sobre a forma como os EUA promovem os seus direitos, liberdades e garantias e sobre a forma como fazem a apologia dos pais fundadores do seu sistema democrático, fiz, nessa altura, o desafio ao Dr. Carlos Veiga, dizendo-lhe que achava importante que, para a história de Cabo Verde, ficasse também um livro que contasse o seu percurso político como pai-fundador do sistema democrático cabo-verdiano. E isso era por demais importante até pela ausência de bibliografia sobre o período da história recente do país.
"Um estadista de excepção"
Ele aceitou de imediato o convite e assim surgiu a ideia de redigir esta biografia política: pela amizade que tenho pelo Dr. Carlos Veiga, mas sobretudo pela grande admiração política e pessoal que tenho pelo legado político que ele deixou a Cabo Verde, mas também ao continente africano e ao mundo, porque o exemplo dele é raro e muito difícil de encontrar paralelo na história da política africana.
Digo no livro que Carlos Veiga não é apenas o pai da democracia cabo-verdiana como é um estadista de excepção e uma referência para os democratas de todo o mundo. E digo-o com toda a convicção: não só por tudo aquilo que ele fez na transição do partido único para o regime de democracia multipartidária, mas também sobretudo pela forma como sai da cena política, quando é derrotado nas eleições presidenciais. Porque pelos casos que são conhecidos e que estão comprovados, independentemente da diferença de opiniões que sobre isso possa existir na sociedade cabo-verdiana, facto é que há uma decisão do Tribunal que reconhece inequivocamente, pelo menos a existência de 20 votos fraudulentos, razão pela qual condenou a 18 meses de prisão efectiva os membros da assembleia de votos da Covoada, na ilha de São Nicolau, e esses votos seriam suficientes para alterar o resultado final que cifrou em 17 votos de diferença e que ditou a derrota de Carlos Veiga na primeira eleição presidencial a que se candidata. A forma como Carlos Veiga, em nome da estabilidade e da defesa do regime democrático que tinha criado, aceita os resultados de uma derrota que não teve, é de uma nobreza, enquanto estadista e enquanto democrata, que é muito raro encontrar.
" Veiga aceita a derrota que não teve"
Como se lembra certamente, aquando das eleições presidências nos Estados Unidos, entre Al Gore, na altura vice-presidente dos EUA e o candidato George Bush, foi toda ela envolta numa extraordinária controvérsia que ditou inclusivamente a recontagem dos votos na Califórnia, mas onde não houve, em momento nenhum a dimensão e a nobreza que é a testemunhada por Carlos Veiga na forma como aceita a derrota que não teve. Neste sentido, isto dá-lhe uma dimensão de estadista internacional extraordinária e sobretudo transforma-o numa referência da democracia não só cabo-verdiana, mas da democracia africana. A África, infelizmente, na maior parte das vezes, não é sinónimo de democracia. E, portanto, um estadista que tem este comportamento num continente, em que não é habitual haver tantos exemplos de democracia como aqueles que nós gostaríamos, portanto nesse sentido, esse político só pode ser um estadista de eleição e uma referência para os democratas do mundo inteiro. Quem se submete a esse sacrifício supremo de aceitar a derrota que não teve, com a convicção profunda de que ganhou as eleições e não tenta transformar esse sentimento de injustiça que sentia numa luta política que dividiria, como dividiu, na altura, a sociedade cabo-verdiana, inclusivamente a Polícia e as Forças Armadas, que eram quem tinha a capacidade de assegurar a ordem do país e que pela sua divisão poderiam ajudar uma guerra civil, ou pelo menos um grande distúrbio interno, quem aceita essa derrota em nome da estabilidade democrática é alguém que tem uma nobreza de sentimentos democráticos e uma profunda convicção democrática que não é normal encontrarmos no mundo inteiro.
Afirma que toda a expressão da sua admiração por Carlos Veiga encerra-se nas linhas introdutórias e que a obra que se segue resulta de um trabalho de investigação científica, isento e com a distância recomendada perante o objecto de estudo. Foi uma ginástica fácil?
NM - Não é uma ginástica fácil, mas a única possível se se quiser fazer um livro com credibilidade que tenta ser isento em relação à figura do político que está a estudar e sobre o qual está a desenvolver um trabalho de investigação. Comecei por dizer, e aqui admito a minha declaração de interesses, eu tenho natural admiração pelo papel histórico que Carlos Veiga desempenhou e pelos valores que ele professa e com os quais eu me identifico. Isso não quer dizer que me coloque a mim, na redacção desta biografia, apenas na promoção das suas ideias, sem reconhecer o papel que os outros tiveram na independência do país. Sem essa independência, não haveria depois o enquadramento para a evolução de um regime de partido único para o multipartidarismo. Mas uma coisa é a independência, outra coisa é a conquista da liberdade do povo.
Mas não é um livro contra o PAICV?
NM - Não é um livro contra ninguém, é um livro de promoção dos valores da liberdade e da democracia que naturalmente tem um rosto, teve uma liderança política: chama-se Carlos Veiga e deve merecer o seu devido destaque e a sua devida relevância histórica. Mas este livro é um livro que também destaca, de alguma forma, a existência de um regime democrático com a consagração das liberdades individuais que hoje é compartilhado tanto pelo MpD como pelo PAICV. Não é um livro rigorosamente contra ninguém, é um livro de homenagem à democracia que hoje é praticada pelos dois partidos.
Os chamados históricos da primeira República, Aristides Pereira, Pedro Pires, Abílio Duarte, numa lhe suscitaram interesse para uma biografia política?
NM - Como eu disse, a motivação para a escrita desta biografia vem muito da admiração pessoal pela entidade que se intui na comunhão de valores que professamos todos: valores da liberdade, da democracia, da defesa dos direitos e liberdades individuais, da promoção da sociedade civil, da forma como entendemos que a sociedade civil deve ser o motor do desenvolvimento do país. Nesse sentido a minha identidade política vai muito mais no sentido daquilo que Carlos Veiga professa do que aquilo que eles professaram no passado. Independentemente disso, não deixo de ter sobretudo respeito político por figuras como Pedro Pires, Aristides Pereira, Amílcar Cabral e outros da história recente da República de Cabo Verde.
Escreve nas primeiras páginas do livro que a democracia, tal como hoje a conhecemos em Cabo Verde, tem direitos de autor e um rosto, Carlos Veiga. Como alicerça a sua afirmação?
NM - Repare, quando Cabo Verde reclama para si o direito de conduzir em mãos o seu próprio destino, faz-se num contexto histórico e geo-estratégico, em que, sobre forte influência da ex - União Soviética, muitos dos novos países africanos que foram surgindo pelo desmantelamento dos impérios coloniais abraçaram o maxismo-leninismo como forma de organização do Estado, o que na altura, era o que estava mais em voga e que mais sentido fazia pelo apoio político, ideológico e militar que estes movimentos de libertação nacional foram recolhendo por parte da antiga União Soviética. Daí que o enquadramento histórico facilita em muito a evolução política que Cabo Verde teve nessa altura. Os lideres da independência foi desse bloco de Leste que receberam apoio e portanto era natural que decalcassem para a concepção do Estado cabo-verdiano um modelo político do bloco do qual tinham afinidades políticas e ideológicas por receberem esse mesmo apoio a que me referi há pouco.
Como afirma, a história da primeira década da segunda República confunde-se com a biografia política de Carlos Veiga...
NM - Isso é normal, acontece assim em quase todos os países. São os seus líderes históricos, aqueles que dizem não ao modelo vigente e que reclamam um modelo diferente, a sua liderança histórica nesses períodos acaba por se confundir com a história do próprio país. O que é importante aqui é que Carlos Veiga é de facto o primeiro líder de um movimento que promove a alteração para um regime democrático multipartidário, onde esses valores humanos, nomeadamente a promoção dos direitos, liberdades e garantias dos cidadãos, a consolidação de uma economia de mercado e a abertura do país ao mundo, independentemente das questões ideológicas é feito por Carlos Veiga na liderança do MpD, em Cabo Verde. Daí que ele seja naturalmente o rosto da democracia, assim como em Portugal, esse papel é muitas vezes atribuído a figuras como Mário Soares ou Francisco Sá Carneiro.
O livro, apesar de focalizar-se na figura de Carlos Veiga, oferece aos estudiosos da história recente de Cabo Verde, informações importantes desde a independência do país até à conquista da democracia multipartidária. Porque esta abordagem?
NM - Só se consegue perceber a importância e dimensão da alteração do regime político, se percebermos o que existia antes. Só pela análise de Cabo Verde, desde o período colonial, até ao momento da luta pela emancipação nacional à conquista da independência, à criação de um sistema de partido único é que se consegue perceber-se melhor para que lado é que isto acabou por mudar devido ao papel político que Carlos Veiga e outros tiveram nessa altura. Havia que se fazer esse enquadramento histórico para melhor se perceber o que é que mudou.
Diferentemente de Amílcar Cabral, Carlos Veiga entra na política paulatinamente. Qual a explicação para a diferença dos dois percursos?
NM - Eu acho que os líderes políticos são todos frutos do contexto histórico onde se inserem. Amílcar Cabral vive numa altura em que o ponto principal do seu trajecto político passava pela conquista da soberania e da independência de Cabo Verde: na altura, segundo o projecto dele, da emancipação conjunta da Guiné e de Cabo Verde. O seu grande objectivo político era a independência do país. E ele tem muito mérito em tudo o que conseguiu, bem como tiveram também Pedro Pires, Aristides Pereira e outros que estiveram na base da conquista da independência do país. O meu livro tenta ser justo também com essa conquista política. Repare, não se mudaria nunca o regime de partido único para um regime de democracia multipartidária feito pela liderança política de Carlos Veiga se antes não tivesse havido a conquista da própria independência nacional, mérito de Amílcar Cabral, de Pedro Pires, de Aristides Pereira e de outros que combateram pela independência do país.
Carlos Veiga e José Maria Neves chegaram à chefia do Governo com sensivelmente a mesma idade. Termina aqui todo o paralelismo entre os dois políticos ou existem mais?
NM - José Maria Neves e Carlos Veiga não têm percursos comuns, nem são equiparáveis. Porque um esteve na génese de uma mudança estrutural de um regime político em Cabo Verde. Carlos Veiga foi o homem que conseguiu mudar a existência de um sistema de partido único para a criação de uma democracia multipartidária que ainda hoje é concebido como o regime político que melhor serve os interesses dos cidadãos. Isso é verdade em Cabo Verde, e é uma verdade no mundo inteiro. Portanto ele tem um grande mérito: é o mérito da mudança e da estruturação de um novo regime político. José Maria Neves é primeiro-ministro já com esse regime em funções, depois de 10 anos de existência e depois de uma primeira e profunda transformação no Estado e na sociedade cabo-verdiana. Nesse sentido não penso que haja um paralelismo. Como calcula, sendo cientista político, mas sobretudo sendo um autor estrangeiro, não me compete a mim estar a fazer avaliações sobre o presente e as decisões políticas que cada um toma. Eu julgo, e é objectivo deste livro fazer o destaque do papel daqueles que tiveram uma condução política estruturante para a mudança do país e ao tipo de regime que melhor serve e defende o direito dos cidadãos. José Maria Neves não entra neste contexto, porque já é primeiro-ministro com um regime político perfeitamente consolidado. E eu julgo que a maior homenagem que nós podemos prestar àqueles que promoveram a transição para a democracia multipartidária em Cabo Verde é que, exactamente o partido único sob a liderança de José Maria Neves, e ao fim de quase dois mandatos de governação do país, nunca pôs em causa a estrutura e os pilares fundamentais do regime democrático cabo-verdiano. O que significa que a democracia veio para ficar, e esse é um mérito de Carlos Veiga e de quem a promoveu. E obviamente é mérito daqueles que a mantêm. Deixe-me fazer aqui um parêntese que eu julgo que é extremamente importante para a compreensão deste livro e para a dimensão da democracia cabo-verdiana: a democracia não se conquista nem numa manhã, nem num decreto político; a democracia é um processo continuado de longa duração que se conquista dia-a-dia com a prática política e portanto todos aqueles que em democracia aceitam submeter-se a eleições e governar o país no respeito pela Constituição e pelos princípios democráticos são todos importantes para a consolidação desse regime democrático. Sejam do PAICV, sejam do MpD.
A sua biografia política de Carlos Veiga passa quase por alto numa questão que abalou o MpD: as cisões internas no partido. Foram, na sua opinião, pouco relevantes?
NM - Quando se aborda a evolução de um regime político sob a perspectiva sistémica, mais importante do que a funalização é que, as estratégias pessoais que levam depois a determinados projectos políticos, perdem alguma relevância e algum interesse perante o todo nacional. O objectivo desta biografia política que está centrada no papel histórico que Carlos Veiga teve na transição para o regime democrático e para o seu trajecto político mesmo depois, enquanto candidato presidencial, era centrar-me exactamente sobre o seu percurso político. A biografia aborda necessariamente as cisões, como aborda também o percurso colonial e o período do partido único, mas eu não escrevi um livro sobre o MpD; é um livro sobre Carlos Veiga. As cisões que tiveram lugar no MpD, tiveram naturalmente a sua importância, mas corresponderam essencialmente a projectos pessoais de poder que acabaram depois por não ter continuidade histórica. Hoje em dia, esses partidos não têm uma expressão suficiente para moldarem o sistema político-democrático cabo-verdiano. Até porque, na sua grande maioria, esses líderes políticos acabaram por se reagrupar de novo no MpD, numa fase posterior.
Mas em todo o caso puseram em causa a liderança política de Carlos Veiga.
NM - Quem está durante tanto tempo à frente de um partido político e quem está tanto tempo a liderar um país é natural que dentro das suas próprias tropas, de vez em quando, haja cisões: ou porque a determinada altura do caminho se percebe que não se deveria ir tão longe ou tão depressa para determinado objectivo, ou porque os ideais não correspondiam exactamente àqueles que acabaram por ser plasmados na Constituição de 1992, mas dissidências houve também no PAIGC. Em todo o caso, o resultado das cisões no interior do MpD não foi determinante na moldura do regime democrático cabo-verdiano que veio a desenvolver-se. Na biografia política que escrevi o mais importante era falar sobre Carlos Veiga e se calhar não dei a este aspecto tanta atenção como poderia ter dado. Mas, no percurso e na riqueza da história recente de Cabo Verde, há tantos ângulos de abordagem diferente, que era impossível transcrevê-los todos numa biografia política. Mas esse é o desafio que esse livro pode ter: é estimular que outros façam também uma análise mais profunda e mais datada no tempo sobre determinadas questões e sobre determinados períodos da evolução histórica de Cabo Verde. O importante é que surjam mais livros e que o debate académico se abra já fora das querelas político-partidárias imediatas e que se abra aqui uma tradição.
Pode-se dizer que Carlos Veiga formou uma nova geração de políticos?
NM -Quando se cria um sistema em que se permite que, em liberdade, as pessoas consigam, numa plena igualdade de oportunidades, ter a sua oportunidade de explorarem e de desenvolveram as suas capacidades pessoais na gestão da coisa pública, em prol da sociedade e do país que servem, é normal que a seguir surjam todo um conjunto de novas gerações que, fruto da liberdade e da democracia herdadas, possam desenvolver-se pessoal e profissionalmente ao serviço do seu país. Nesse sentido há um conjunto de novos políticos que surgiram nessa altura, que hoje têm estado a aparecer e que garantem a Cabo Verde uma vitalidade democrática que ajudam e contribuem, em muito, para que sistema político vigente conheça uma maturação diferente do que aquilo que tem conhecido noutros países.
EXPRESSODASILHAS.CV

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