Uma reflexão livre sobre candidaturas presidenciais em semipresidencialismo (o nosso), autonomia ou «clandestinidade» de militantes e dirigentes, a «doença infantil» das democracias em vias de crescimento e a murmuração canibalesca
1. Num sistema, como o nosso, em que as candidaturas a Presidente da República são individuais e não de raiz partidária, os partidos políticos podem decidir apoiar (ou não apoiar) uma das candidaturas apresentadas por cidadãos. Num partido que funcione democraticamente, a decisão será precedida de debate interno, formalizado ou não, mas naturalmente que ele estará atento ao que se passa fora do seu âmbito de acção e funcionamento, isto é na sociedade de onde surgiu e de onde não deve apartar-se. Num tal debate podem e devem participar os seus membros, dirigentes ou simples simpatizantes ou eleitores, com liberdade e autonomia, até pela singela razão de que não há, nunca vai haver um candidato do partido, por este apresentado formalmente.
Num momento considerado adequado ou oportuno, o partido toma a decisão – qualquer que ela seja, de apoio a um candidato ou deixando livres os militantes na escolha do sentido do voto - através de procedimentos definidos estatutariamente. Discutível, polémico, pode já ser se ainda é suportável que um afiliado opte por acompanhar candidato que não seja exactamente o preferido pelo partido a que pertence, pela via de uma deliberação interna e democrática. Temos, mesmo em países próximos de nós, experiências não coincidentes. Pode dizer-se que a resposta, na prática, dependerá do perfil regulamentar do partido e de suas história e tradição políticas, sobretudo.
2. Não será, porém, de afastar a ideia de que o sentido constitucional dos princípios e regras sobre o sistema de governo e, em especial, sobre a natureza da eleição presidencial, poderia ficar ladeado ou posto em causa numa interpretação (ou num regulamento) que privilegiasse a obrigação de «silêncio político» ao militante em posição minoritária (afinal não há, não pode haver candidato do partido, podendo ver-se na deliberação partidária uma mera indicação política geral).
Confessamos não ter uma noção acabada ou definitiva sobre a concreta questão posta.
3. Mas ao menos enquanto o partido não adopta uma posição favorável a uma ou outra candidatura (se disso for caso, já que ele pode legitimamente não o fazer), deve ser totalmente livre e autónomo o comportamento do membro, ainda que dirigente ou responsável, no sentido do compromisso mais ou menos público, mais ou menos ostensivo, relativamente a uma candidatura presidencial, sendo inclusivamente uma tal eventual postura elemento dos necessários debate, jogo político democrático (de influência democrática, legítima) e envolvimento que são úteis ao esclarecimento dos membros antes de uma participação o mais consciente possível no processo de deliberação. Naturalmente que o militante e, particularmente, o dirigente pode entender, por motivos os mais diversos, designadamente de ordem estratégica pessoal ou de grupo, de «gestão» de percurso pessoal, seguir um posicionamento diferente, por exemplo mostrando-se reservado ou até intencionadamente plástico quanto ao sentido de sua preferência.
4. É muito normal que isso aconteça com o líder máximo do partido. O mais normal, quiçá aceitável, é que pretenda e deva ser prudente nas tomadas de posição públicas antes do momento da deliberação formal da organização que dirige, com o propósito de assegurar uma imagem de neutralidade que favoreça a sua própria chefia e a «sobredeterminação final» de resultados como a coesão interna ou a eficiência organizativa. Mas se entender fazer coisa diferente, não será caso de qualquer ilegitimidade ou irregularidade, mas simplesmente de acto político susceptível de avaliação, positiva ou negativa, por parte do colectivo a que pertence e da sociedade, com a assunção das correspondentes consequências políticas.
5. O leitor aperceber-se-á nesta altura que não é rigorosamente assim que, entre nós, se passam as coisas. Viu-se isso há uns meses quando um potencial candidato presidencial, provindo da área de determinado político, esteve presente num evento mais ou menos público acompanhado por um certo número de dirigentes que manifestavam simpatia pela candidatura, havendo reacções vigorosas de altos responsáveis partidários. Algum «ruído», neste caso, anónimo ou «clandestino», mas sem grande ressonância, surgiu igualmente por causa da presença de dirigentes de um outro partido num encontro de incentivo a uma eventual outra candidatura presidencial.
Normais tais reacções? Sim, enquanto expressão de uma, ainda, incompreensão do facto de, em democracia, serem, deverem ser também os partidos espaços e territórios de liberdade. Trata-se, sim, de uma, em nosso entender, inadequada visão do que devem os partidos políticos numa sociedade democrática moderna e aberta, sobremaneira dos processos de seu funcionamento. Entre nós ainda são frequentes assomos de intransigência crítica e, amiúde, de violência verbal (sobretudo e significativamente, na veste do anonimato) face àqueles que decidem não ser «clandestinos» militantes da democracia e da cidadania. Que decidem assumir por inteiro a condição de democratas e homens e mulheres livres.
[ Outra coisa seria a utilização de meios e recursos partidários para sustentar uma candidatura. Aqui deve valer, em absoluto, o princípio da igualdade de tratamento para os membros]
6. Aliás, este sintoma de «doença infantil» da democracia ainda em crescimento verifica-se com facilidade, quando somos quase sempre acríticos em público – somos todos muito bons profissionalmente, toda a obra literária produzida por um cabo-verdiano é estupenda, não há visita cujos resultados não sejam «muito positivos» ou, pelo menos, «globalmente positivos», qualquer CD que se apresente é «um marco fundamental na música de Cabo Verde» e por aí fora – e surgimos com frequência radicalmente ferozes, de uma inusitada agressividade verbal, senão mesmo canibalesca murmuração, no escrito ou no comentário anónimo e «clandestino» (basta ler, para quem tenha ainda tempo e paciência de o fazer, os comentários em certos on lines).
Esse é um claro tropeço em caminhos necessários de liberdade
Jorge Carlos Fonseca
jcafa@yahoo.com/jcfonseca@cvtelecom.cv
Sem comentários:
Enviar um comentário
Comentar com elegância e com respeito para o próximo.