«Não temos que pensar que a natureza humana tem que ser perfeita para que possamos acreditar que ela pode ser melhorada. Não temos que viver num Mundo idealizado para que possamos procurar os ideais que irão fazer do Mundo um sítio melhor». Barack Obama, em Oslo, no discurso de aceitação do Prémio Nobel da Paz
Lembram-se daquela tirada de David Plouffe sobre a necessidade de Obama voltar a ligar a luz do sabre, em resposta à piada de Jon Stewart, que comparara o Presidente ao todo-poderoso... Mestre Jedi da Guerra das Estrelas? Quando tudo parecia destinado a correr mal a Barack, eis que voltou a sentir-se um cheirinho a «Obamania».
Começa a ser repetitivo dizer que uma intervenção de Obama «foi notável», mas muitos dos que ouviram o discurso de aceitação do Prémio Nobel da Paz, em Oslo, falam em algo próximo de uma obra-prima: Barack juntou retórica, coragem política e profundidade intelectual.
Não foi no estilo persuasivo de campanha que o discurso de Filadélfia (Março de 2008) exigia. Nem no tom jubilatório dos discursos de investidura democrata (Denver, Agosto de 2008), da noite da vitória eleitoral (Chicago, Novembro de 2008) ou da tomada de posse como Presidente (Washington, Janeiro de 2009).
Já foi mais parecido com o discurso do Cairo, dirigido ao mundo muçulmano, ou com o discurso de Praga – em que já tinha apontado alguns dos grandes princípios que agora expôs com mais detalhe para a política externa.
Certo, certo é que foi um dos melhores discursos da vida de Barack Obama – e só isso é já um rótulo de garantia. Quando se fizer a história dos momentos chave da Presidência Obama, este discurso de aceitação do Nobel terá um lugar especial: não só pelo brilhantismo, mas, sobretudo, porque poderá marcar o início de uma nova etapa no modo como Barack pretende conduzir o seu mandato presidencial.
Retórica e realismo
Numa altura em que começavam a parecer fechados os caminhos para que o Presidente recuperasse o controlo da situação, Obama voltou a mostrar que tem mesmo um dom especial para se transcender nos momentos de maior tensão – ou não tivesse sido o vencedor-surpresa da eleição disputada num dos períodos mais difíceis da história americana.
Sem camuflar a aparente contradição que o Mundo inteiro lhe apontava (o de estar a aceitar o Nobel da Paz apenas nove dias depois de ter decretado o envio de mais 30 mil soldados americanos para o Afeganistão), Obama usou um trunfo de retórica que domina como quase ninguém: atacou de frente o ponto que lhe poderia ser mais embaraçoso e começou logo por abordar essa dualidade Guerra 'vs' Paz.
O Presidente avançou para uma definição de «guerra justa», um conceito, no mínimo, perigoso, pelos desvios de interpretação que foram feitos durante os anos Bush.
Sem medo da comparação, Obama especificou os termos em que, enquanto Presidente, considera que os EUA têm legitimidade de travar uma guerra. Recordou uma verdade aparentemente óbvia, mas que ajudou a demarcá-lo dos sectores esquerdistas que agora o tentam crucificar pelo reforço de tropas no Afeganistão: «Um movimento pacifista nunca teria derrotado o Exército de Hitler. As negociações não teriam os líderes da Al Qaeda a baixarem as suas armas».
Doutrina Obama
Foi o lançamento para um discurso notável. Durante 35 minutos, Obama reconheceu, com humildade, que os feitos que já alcançou estão ainda «muito aquém» de outros laureados, como Mandela, Marshall ou Martin Luther King.
Questionou o lugar da América no Mundo, fez dura autocrítica do que foram atitudes e comportamentos dos EUA nos últimos anos, mas deixou muito clara a ideia de que -- na esteira dos seus antecessores -- a América saberá assumir as suas responsabilidades históricas, como única superpotência militar.
Se dúvidas restassem, o discurso de Oslo selou os contornos do que muitos já apontam como sendo a Doutrina Obama: uma visão «pragmática» e «realista» de um Mundo onde «o Mal existe», mas assumindo, com muita clareza, que a América, com esta administração, não repetirá Guantánamo ou Abu Ghraib («os Estados Unidos não torturam») e sabe distinguir o «erro» da invasão do Iraque (palavra nunca proferida no seu discurso) da «necessidade» da intervenção no Afeganistão.
São dados bem menos românticos do que o «yes we can» da campanha? Talvez sejam. Mas ninguém pode acusar Obama de incoerência: em traços largos, esta «doutrina» já havia sido exposta por Barack durante a campanha -- repetiu-a nos discursos, nos debates e escreveu-a em artigo profundo e muito bem estruturado, assinado na revista Foreign Affairs, durante o duelo com Hillary nas primárias.
Consistente com o seu próprio passado, mas mais «presidencial» no estilo e na «solidão» do enorme peso que carrega nos ombros (enquanto Presidente de um país em duas guerras), o discurso de aceitação do Nobel pode ajudar Obama a recuperar o essencial da sua base de apoio (os democratas e os independentes) e – eis a enorme novidade -- agradou a uma boa parte dos republicanos, que, pela segunda vez (a primeira tinha sido nove dias antes, no discurso em West Point) olharam para Obama como um Presidente capaz de «garantir a defesa da América».
Intervalo na crispação
«Foi um grande discurso. Muito profundo e, nalgumas passagens, filosófico mesmo. É um discurso que eleva a imagem da América», observa David Gergen, antigo conselheiro de quatro Presidentes americanos.
Em editorial no Washington Post, Ruth Marcus enuncia: «Na sua curta carreira, Obama sempre foi capaz de exceder as expectativas nas alturas cruciais. A sua retórica em Oslo foi arrebatadora e convincente. Ao mesmo tempo, expôs uma visão séria e abrangente do Mundo. Foi um discurso não de um novato, nem de um homem sob fogo, mas de um Presidente que, com o passar do tempo, vai crescendo na sua posição.»
Mais directo, numa só frase, no seu estilo six-pack, Jack Cafferty (autor do Cafferty File, da CNN) resumiu o essencial: «The guy did an amazing speech». Já há algum tempo que não se ouvia uma tirada destas sobre Barack Obama.
Os problemas internos do Presidente americano vão continuar. Mas o notável discurso de Oslo pode ter aberto um novo capítulo no mandato presidencial de Obama – lançando, finalmente, as bases para um caminho de «reconciliação» (uma das ideias fortes da sua campanha) entre as inúmeras sensibilidades políticas e ideológicas que existem na América.
Parece que a estrela de Barack Obama vai continuar a brilhar por mais algum tempo.
ABOLA.PT-Germano Almeida é jornalista de A Bola e autor do blogue CASA BRANCA
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