Há cada vez mais pessoas no Programa de Protecção de Testemunhas. Arriscam a vida em nome da Justiça.
LISBOA-Maria entrou no consultório do cirurgião plástico Biscaia Fraga disposta a mudar de identidade. Nos últimos dias tinha sido ameaçada de morte por duas vezes. "Estava em pânico, com a vida a desmoronar-se", recorda o médico.
A mulher de 48 anos, da região centro, presenciara o assassínio dos familiares. Escapou com vida porque se escondera um pouco antes do homicida disparar a sangue frio. Não passou muito tempo até o autor do crime descobrir que era ela a testemunha que o podia mandar para a prisão. "Ninguém faz uma operação destas de ânimo leve, mesmo a conselho de um juiz", diz o cirurgião que não esquece os pormenores da consulta, de há dez anos.
Nos dois meses seguintes, Biscaia Fraga modificou radicalmente a aparência da mulher de tez morena, olhos e cabelos escuros. "Ficou irreconhecível e mais bonita". Numa primeira fase, fez-lhe uma cirurgia ao nariz, ao queixo e à boca, três zonas determinantes na identificação de uma cara. A seguir, retocou-lhe as pálpebras e maçãs do rosto, tornando-as salientes. No final, submeteu-a a um peeling agressivo para aclarar o tom da pele. Além das cirurgias, a equipa de especialistas alterou-lhe a cor dos olhos, com lentes de contactos, e do cabelo. "Uma mulher do campo transformou-se numa elegante senhora da cidade". Biscaia Fraga desconhece o seu actual paradeiro. Sabe apenas que Maria mudou de Bilhete de Identidade e de terra, mas não de país. "Acho que a salvei".
Como Maria, 35 pessoas foram obrigadas a mudar de vida ao entrarem no programa de protecção de testemunhas, só desde 2003, altura em que foi formada a Comissão de Programas Especiais de Segurança. E o número não tem parado de aumentar, sobretudo desde o ano passado. Umas presenciaram um crime, outras eram agentes infiltrados mas também há casos de criminosos arrependidos. Todos decidiram colaborar com a Justiça mesmo correndo risco de vida. Para os proteger, o Estado mudou-lhes o nome, deu-lhes uma nova casa ou um novo passaporte. Foram obrigados a voltar as costas à família. O que só estamos habituados a ver nos filmes de Hollywood afinal também acontece em Portugal.
Neste momento, há 22 testemunhas abrangidas pelo programa e o Expresso sabe que só em Agosto foram integradas três. O crescimento da criminalidade violenta e organizada, já referenciado no último relatório de Segurança Interna, ajuda a explicar o recurso cada vez maior ao programa. "Há mais casos de intimidação de testemunhas, pelo que aumenta a necessidade de protecção", explica o juiz Armando Leandro, presidente da Comissão de Programas Especiais de Segurança.
Cofres e envelopes lacrados Só os cinco responsáveis da comissão sabem o paradeiro e a verdadeira identidade destas pessoas sem rosto. O pedido de protecção pode ser feito pelo Ministério Público ou pela própria testemunha. Em qualquer caso, é aberto um processo confidencial, que é entregue num envelope lacrado directamente a Armando Leandro. "Não há ofícios, faxes, e-mails ou telefonemas. É tudo em mão", explica o juiz-conselheiro. Os verdadeiros documentos das testemunhas são guardados em cofres até terminar o programa. O que pode durar vários anos ou mesmo o resto da vida.
Nem sempre é fácil recomeçar do zero, sobretudo para aqueles que estiveram ligados ao submundo do crime. Deixaram a escola cedo de mais e nunca tiveram um emprego. Para esses, existem programas de formação profissional e trabalho em organismos públicos. Todos os procedimentos estão previstos ao pormenor.
"A lei é eficaz e tem medidas mais do que suficientes. Mas a aplicação prática do sistema ainda está por provar", afirma Carlos Pinto de Abreu, presidente da distrital de Lisboa da Ordem dos Advogados (OA). Sempre que uma pessoa sob protecção depõe em tribunal sem ser divulgada a sua identidade - através de videoconferência e com distorção da voz e imagem - é ele quem verifica se a testemunha é credível e se está realmente em perigo de vida.
"A medida tem de ser excepcional uma vez que dificulta muito o trabalho dos advogados de defesa. Não se pode fazer desta lei uma regra senão toda a gente vai querer depor de cara tapada", alerta. Na prática, uma pessoa pode ser acusada por alguém que nem sabe quem é.
Já a procuradora-geral-adjunta Maria José Morgado defende que "a lei não garante uma efectiva protecção das testemunhas ou dos arguidos que optem por colaborar". Sem adiantar pormenores, por razões deontológicas, a responsável garante conhecer "casos concretos" em que o programa mostrou falhas, permitindo a identificação das pessoas que deveria proteger.
O presidente da Comissão de Programas Especiais de Segurança nega: "A protecção tem sido eficaz. O sistema tem condições para dar resposta mesmo que haja um aumento de pedidos". Ainda assim, Armando Leandro admite que possam ser necessários "mais meios" para proteger os que arriscam a vida em nome da Justiça.
Pergunta & Resposta
O que prevê a lei da protecção de testemunhas?
Caso seja aprovado um plano especial de segurança, o Estado pode fornecer à testemunha novos documentos de identificação, arranjar-lhe uma nova casa (em Portugal ou no estrangeiro), um emprego, um subsídio de subsistência e até uma operação plástica.
Quem toma a decisão?
Além do presidente (Armando Leandro) e de um secretário, ambos nomeados pelo ministro da Justiça, a comissão de Programas Especiais de Segurança integra mais três pessoas: duas indicadas pelos conselhos superiores da Magistratura e do Ministério Público (MP) e outra nomeada pelo ministro da Administração Interna.
A decisão tem de ser tomada por unanimidade?
Não. Basta que três membros estejam de acordo.
Quanto tempo demora o processo de decisão?
A partir do momento em que o juiz Armando Leandro recebe em mãos um pedido de protecção entregue pelo MP, a comissão tem um prazo máximo de oito dias para decidir se a testemunha é, ou não, integrada no programa e as medidas de que vai beneficiar. Em casos urgentes, a comissão pode responder em apenas algumas horas.
Quanto dinheiro pode uma testemunha receber para começar uma nova vida?
O valor é decidido em função do nível de vida da testemunha no momento em que entra no programa. No entanto, o subsídio de subsistência nunca pode ser inferior ao salário mínimo nacional (€450). O Expresso sabe de um caso em que a testemunha recebe todos os meses um apoio de €1000.
Este subsídio é vitalício?
Em princípio não. O subsídio deixa de ter sentido a partir do momento em que a testemunha inicia um novo trabalho e tem rendimentos próprios.
Quais foram os casos mais mediáticos em Portugal?
A primeira vez que em Portugal se ouviu falar de medidas especiais de protecção a testemunhas foi no caso das FP-25. Mesmo antes de estar em vigor a lei (só regulamentada em 2003), cinco arrependidos foram enviados para o Brasil mediante um plano secreto da PJ autorizado pelo Governo, levando cada um cinco mil contos. Em 1986, o juiz de instrução deste caso, Martinho de Almeida Cruz, também saiu do país depois de ameaças de morte. O mesmo aconteceu com o juiz Adelino Salvado. O caso de corrupção na Brigada de Trânsito, em 2006, foi outro processo mediático em que foram aplicadas medidas de protecção à principal testemunha de acusação. Mais recentemente no processo da 'Mafia da Noite', duas testemunhas-chave mudaram de país.
EXPRESSO.PT-Por Joana Pereira Bastos e Hugo Franco
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