Nesta quarta parta da entrevista com Jorge Carlos Fonseca, outros assuntos fortes são abordados.
A experiência vivida antes da independência entre Cabo Verde e Portugal, as odisseias para a formação do MpD, enfim, uma parte interessante e de leitura obrigatória.
O senhor é muito conceituado a nível Internacional e podia facilmente prosseguir a sua carreira no estrangeiro e ganhar muito mais dinheiro. Lembro de ter um professor em Portugal, um grande Penalista (Marques da Silva) que o citava sempre como uma mente brilhante. Pergunto porque desse seu regresso a Cabo Verde?
Bem aqui é a minha terra. Eu saí de Cabo Verde para estudar em Portugal ainda antes da independência e tive um problema político na Universidade de Coimbra, sendo expulso por uns anos num processo típico dos tempos do Salazarismo. Na altura eu era militante do PAIGC, era muito jovem e na altura do 25 de Abril entreguei-me de corpo e alma ao processo da independência de Cabo Verde e recebi indicação por parte dos dirigentes do PAIGC para regressar a Cabo Verde. Pode imaginar o que se passa na cabeça de um jovem com 22/23 anos com ideais de independência, revolução e não pensei em mais nada. Regressei a Cabo Verde e aqui convidaram-me para ser Comissário Político Nacional das FARP mas depois acharam que era muito jovem e muito radical e por isso não devia ocupar esse cargo. De um momento para o outro mandaram-me para organizar o Comité do PAIGC nos EUA, sem prazo, praticamente sem nada; fiquei 3 a 4 meses e depois pediram para regressar ao país. E fui então enviado para representar o PAIGC em Geneve (Suíça) numa conferência das Nações Unidas sobre o Direito do Mar.
Quando regressei fui nomeado Director Geral da Emigração e dos Serviços Consulares no Ministério dos Negócios Estrangeiros. Entretanto, tempos depois, em 1979, houve aquela ruptura conhecida pelo fenómeno do fraccionismo e trotskismo: rompemos com o PAIGC na altura. Eu tinha 28 anos e aquilo foi muito duro mesmo; e hoje em dia sobretudo os jovens não conhecem essa faceta da nossa história...
Porque é que aconteceu essa ruptura? Muitos críticos diziam que a maioria dos que consideravam trotskistas nem conhecia quem era Leon Trotski e nem a sua doutrina.
Sim é verdade. Mas eu, Jorge Carlos Fonseca, realmente conhecia a obra de Trotski, assim como Rosa de Luxemburgo , Marx, Lenine porque tive a oportunidade, em Portugal, de conviver num ambiente universitário de esquerda, Jazz, revolução surrealismo, movimentos associativos que eram dominados pelos partidos e pelas ideologias esquerdistas. Era o ambiente geral dos meios universitários naquela época.
As pessoas eram Cabo Verde, sobretudo críticos do regime do PAIGC, críticos de maneiras diferentes, por ideologias diferentes, mas com alguns pontos em comum.
Podia citar nomes de pessoas aqui em Cabo Verde que faziam parte desse Grupo?
Era um grupo vasto. Posso citar nomes como Manuel Faustino, Eugênio Inocêncio, José Tomás Veiga, Braga Tavares (Xanon) que vive agora em Roterdão, Gualberto do Rosário, Euclides Fontes que agora vive nos Estados Unidos, Helena Lopes da Silva que vivia em Portugal, Espírito Santo, entre muitos outros.
Não havia figuras próximas do regime do PAIGC?
Bem, éramos formalmente todos do PAIGC. Havia muita gente, mas houve casos de pessoas que recuaram. Por exemplo, o Amaro da Luz era um dos críticos que na altura reuniu muitas vezes connosco inclusivamente há um pormenor: combinamos que ele daria uma entrevista em Nova Iorque onde era embaixador nas Nações Unidas sobre a ruptura; o que acabou por não acontecer.
Havia outros dirigentes próximos de nós como o Renato Cardoso não tão claramente inserido no grupo, teve algumas hesitações ou o José Eduardo, hoje Embaixador, que inicialmente foi considerado trotskista, mas depois também se demarcou publicamente, José Luis Fernandes, Alexandre de Pina, o Tolanta, que veio a falecer. Bem não se pode dizer que eram todos trotskistas, mas digamos que estivemos juntos de uma ou outra forma crítica relativamente ao modo como as coisas estavam a ser conduzidas. Quando se deu a ruptura e começaram a sentir-se as conseqüências, a reacção do regime foi dura e tudo foi etiquetado como trotskista e fraccionista. Era uma etiqueta fácil e cômoda.
Mas qual era o vosso objectivo? Golpe de Estado?
Não, nada disso: isso seria utopia a mais. Não éramos propriamente loucos. Nós éramos críticos do regime do PAIGC e é preciso levar em linha de conta de que éramos jovens e na altura queríamos que as coisas funcionassem melhor. Entre outras coisas queríamos democracia interna no partido, o que não havia no nosso entendimento.
O objetivo da Revolução permanente de Trotsky era chegar ao Poder...
Repare: pode isso ter algum aspecto cómico. Quando o conjunto de pessoas intituladas de combatentes chegou de Conakry, a Cabo Verde, eles na sua esmagadora maioria não conheciam Cabo Verde, o Cabo Verde daquela época, praticamente toda a estrutura do PAIGC era constituída por nós, todos muito jovens e idealistas, os chamados trotskistas é que tinham praticamente tudo em suas mãos.
O Eugénio Inocência (Dududa) era responsável do partido em Santo Antão e em S.Vicente, o Faustino era responsável do partido na ilha do Sal, o José Tomás Veiga era responsável por Santiago, eu era Comissário Político da Praia, Euclides Fontes de S. Miguel, Braga Tavares na Cidade Velha e assim por diante. Isto é, nós éramos tão ingénuos ou românticos que eles chegaram e entregámos tudo de bandeja.
Era a ideia que tínhamos deles; de heróis de luta, grandes combatentes, colegas de Cabral, etc. Portanto nós tínhamos efectivamente o poder e entregámo-lo ao pessoal que vinha do «mato», da luta, de bandeja. Mais depois, tempos depois, não muito tempo depois, veio a desilusão, a decepção foi quase imediata. Eu lembro-me da primeira reunião da Direcção Nacional na Praia, presidida por Aristides Pereira em que participei. Foi já uma decepção por várias razões. Por exemplo, a questão da democracia interna, não se podia criticar livremente, então havia pessoas que estavam desiludidas com a forma como funcionava o regime, mesmo que tivessem formação e percurso político diferenciados, uns mais influênciados pelo marxismo, outros mais nacionalistas.
Dos Combatentes quem eram os mais duros, mais "pitbull" em reprimir as ideias contrárias?
Posso citar o nome do Silvino da Luz como pertencente à ala então vista como a mais radical que veio de Conakry e que várias vezes pediu as nossas "cabeças", o que Pedro Pires não aceitou da primeira vez, mas em 79 quando houve uma clivagem mais forte, Pires foi inteligente e tomou conta dos acontecimentos e foi ele que ficou na vanguarda do combate aos ditos fraccionistas, liderando o processo da purga e do que chamavam a campanha de erradicação de ideologias estranhas ao partido.
Foi um período difícil, muito duro, eu como muitos outros colegas por exemplo tinha um agente de segurança permanentemente no meu encalço, na minha casa, se fosse a Prainha tomar um banho no mar, tinha lá um segurança, se fosse para uma festa particular e chegasse a casa de madrugada o segurança acompanhava-me sempre de caderno e caneta na mão. Não tínhamos hipótese de conseguir um trabalho. Pedimos emprego e foi sempre recusado.
Entretanto, em Setembro de 1979 houve os acontecimentos da Brava, facto histórico que por sinal ainda é pouco conhecido em Cabo Verde ou na diáspora. Mas foram acontecimentos dos mais duros e marcantes do regime de partido único no nosso país. Eu e mais duas pessoas, Dulce Dupret e Daniel Lobo, fomos retidos na ilha Brava durante 3 semanas, não podíamos sequer estar numa pensão privada, muito menos apanhar um barco ou alugar um carro. Quando nos permitiram regressar tivemos de carregar as malas e ir a pé de Nova Sintra a Furna, uma humilhação tremenda, metidos num barco e vigiados por um pelotão de polícias e militares armados. Mas houve vítimas que mais sofreram, caso de David Barros, hoje nos Estados Unidos.Uma história muito triste.
Então eu tive que optar por sair do país. Fui para Portugal onde poderia além do mais findar os estudos superiores.
Pediu asilo?
Na altura havia autorização de saída e que por pressão psicologica só recebias resposta uma hora e meia antes da viagem e por isso ficavas em dúvida se ia ser-te concedida ou não. Fui para Portugal, terminei o meu curso, fiz estágio de advogacia fiz um concurso para assistente estagiário na Faculdade de Direito de Lisboa, consegui entrar, entretanto vinha a Cabo Verde de férias.
Estava ao mesmo tempo ligado a grupos oposicionistas como os Círculos Cabo-verdianos para a Democracia, CCPD.
Tinha a ver com a UCID?
Não, era outro grupo que eu ajudei a criar e de que faziam parte também Eurico Monteiro, Mário Silva, Henrique Monteiro, Daniel Lobo, Arnaldo Silva, Alfredo Teixeira, Jorge Teixeira, José Manuel Pinto Monteiro.
O Grupo estava sediado na diáspora?
Uns estavam em Portugal e outros aqui em Cabo Verde. Tínhamos uma rede na clandestinidade, publicávamos um boletim e do grupo faziam parte ainda, além dos nomes que citei, o falecido Vani, e em Cabo Verde, Manuel Político, Iras, Luís Leite, Jorge Figueiredo, mais tarde Gustavo Araújo, João Brito advogado falecido há uns anos, então repare é algo que deve ser talvez estudado. Se comparar com o MpD dos anos noventa, com a sua liderança política inicial, pode ver que uma boa parte da liderança do MpD veio do CCPD.
Foi então o CCPD que deu origem ao MpD?
Não se pode dizer isso, porque o MpD acaba por representar algo mais vasto e alargado, um forte movimento popular, social e político. Acho apenas que, de certa maneira e em alguma medida, foi um movimento precursor mesmo a nível da sua liderança, se pensarmos na liderança colectiva.
Nomes como Dr. Luis Leite, Eurico Monteiro, Vani, José Manuel Pinto Monteiro, Arnaldo Silva, Mário Silva, Daniel Lobo, Jorge Figueiredo, Jorge Teixeira, Alfredo Teixeira... quer dizer foram todas pessoas que fizeram parte da primeira leva da Direcção política do MpD.
Expresso das Ilhas-Por Norberto Silva
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