domingo, 3 de janeiro de 2010

ENTREVISTA COM MANUEL VEIGA-Cidade Velha Património Mundial

Entrevista a Manuel Veiga, Ministro da Cultura, Parte II

No dia 25 de Junho, a Cidade Velha foi elevada a Património Mundial da Humanidade pela UNESCO. O que significa para si e para Cabo Verde esse reconhecimento?
Eu acho que foi o acontecimento do Ano. Diria mesmo que foi o acontecimento do século. Esse reconhecimento não significa apenas reconhecer a Cidade Velha. A distinção é o reconhecimento da antropologia cabo-verdiana. É o reconhecimento da nossa crioulidade, essa crioulidade que, como sabe muito bem, houve momentos em que se dizia que o povo crioulo não tinha cultura, porque não éramos nem leite nem café, nem branco, nem preto, etc, etc... Quando muito, seria um povo à procura de si próprio.
Ora, quando a Comunidade Internacional reconhece a Cidade Velha, reconhece o berço da nossa crioulidade, reconhece essa mesma crioulidade como metáfora da antropologia das ilhas.
Eu nunca duvidei da importância da Cidade Velha como património mundial, porque quando analiso o papel que desempenhou nos séculos XV, XVI, XVII e não sou eu a dizê-lo, os técnicos que estiveram lá em 2007, num encontro que fizemos sobre "Cidade Velha: o futuro, o passado" é que disseram que ela foi o centro do Atlântico Norte nos séculos XV, XVI e XVII. Todos os barcos que saíam da Europa e que demandavam para as Américas, ou ainda a Ásia ou mesmo o continente Africano, tinham que passar por Cabo Verde. Pedro Álvaro Cabral passou por lá, bem como Diogo Gomes, Vasco da Gama, Cristovão Colombo.
Cidade Velha foi, efectivamente, um laboratório importante de experimentação: de humanismo, de culturas, de espécies, de meio ambiente. Veja a cana de açúcar que existe no Brasil e em Cuba, partiu de Cabo Verde; o milho, o feijão que chegou a Cabo Verde. Quer dizer, o fluxo e refluxo do mundo aconteciam nesse palco da globalização que era a Cidade Velha. Não sei como seria o Brasil sem a Cidade Velha. De certeza, seria de uma outra maneira, ou mais ou menos, mas não seria como é neste momento. Portanto, a Cidade Velha formatou o Brasil, a América Latina. Formatou a América do Norte, formatou Cabo Verde e influenciou países como Espanha, Portugal, etc.,etc. Além disso, nela nasceu uma cultura nova. A nossa crioulidade: a língua, os costumes, os hábitos, a música, o nosso pensamento, a nossa vivência. Quer dizer, tudo isso nasceu nesse grande laboratório. Então, se isso não é Património da Humanidade, não sei o que é Património da Humanidade. Eu não tinha dúvidas. Era o reconhecimento que faltava. E nós conseguimos esse reconhecimento. De maneira que eu considero que foi um acontecimento não só do ano, como do século também.
Mas se não fizermos um trabalho continuado de melhoramento, de protecção corremos o risco de o Estatuto ser-nos retirado. Qual a política do seu Ministério para engrandecer e preservar Cidade Velha, Património Mundial?
Naturalmente que ganha-se o estatuto e perde-se o estatuto. Bem, já fizemos tudo para ganhar, já conquistámos. Agora, a preservação desse estatuto depende de muita gente. Depende do Governo, através do Ministério da Cultura, depende do município da Ribeira Grande de Santiago, depende até da população, em linha geral e depende de Cabo Verde. É um esforço conjugado, primeiro para manter aquilo que nós já temos e para não cometermos erros, porque se ela é Património Mundial da Humanidade há coisas que nós não podemos lá fazer. Por exemplo, tivemos que definir os mapas para proteger as zonas onde não se pode construir ou então onde se pode construir seguindo determinadas regras; zonas onde há coisas que podem ser feitas e outras onde certas coisas não devem ser feitas. Ora, em tudo isto, a população tem que ser muito bem informada. Ela tem que ser a guardiã da Cidade Velha. Ela deve saber que a Cidade Velha é como se fosse uma relíquia. Se houver esse trabalho conjugado, nós não vamos perder; porém, se não tomarmos as precauções necessárias, é claro que poderemos perder o estatuto.
Há um ano realizou-se em Cabo Verde um Fórum Internacional sobre a Economia do Desenvolvimento Cultural Sustentado. Os desafios lançados e os compromissos assumidos estão a ser implementados na prática?
Alguns, nem todos. Há compromissos que levam muito tempo para serem implementados e, depois, também é preciso reunir condições. Uma recomendação é uma proposta para se concretizar. Mas posso dizer, para já, que houve uma medida que facilita a importação de CD's, porque os produtores criticavam tanto as taxas que recaíam sobre os CD's que eram gravados em Cabo Verde, mas que a masterização era feita, por exemplo, na Holanda ou em França. As taxas então eram pagas como se fosse um produto importado, como outro qualquer. Conseguimos resolver, mesmo durante o Fórum, que as Alfândegas emitissem uma ordem de serviço, reduzindo a taxa desses produtos. Houve também a proposta de criação de uma agência de promoção cultural. Ora, isso vai levar o seu tempo, mas a proposta já está, digamos assim, no texto da Lei Orgânica do Ministério da Cultura, em elaboração, e acredito que vai passar. Se a criação não ficar consagrada, então vamos atribuir essa tarefa a uma outra instituição do próprio Ministério da Cultura.
Foi anunciado pelo primeiro-ministro...
Sim, no encerramento do fórum. Outra proposta apresentada vai no sentido de haver um estudo estratégico do desenvolvimento cultural. Nós conseguimos um apoio do PNUD, com uma comparticipação do Orçamento do Estado. Neste momento, há uma equipa que dispõe de seis meses para elaborar o trabalho, e acredito que antes do fim do primeiro semestre de 2010, nós teremos esse plano estratégico. Estão também várias coisas em curso que constituem a nossa preocupação, que vamos realizar quando as condições estiverem reunidas. Para realizar todas as recomendações, o país tem que poder, tem que ter capacidade financeira para realizar.
Considera que valeu a pena a realização desse Fórum?
Foi extraordinário. Mesmo os que estiveram lá disseram que pela primeira vez conseguimos reunir artistas, criadores de todos os horizontes para reflectirem sobre o problema da Cultura em Cabo Verde. Se há uma coisa que a cultura precisa neste momento é a formação e organização; e mesmo quando falamos em termos de Agência de Promoção Cultural, é para facilitar também isso, sobretudo a organização. Está a ver o sucesso que Cesária tem? Sem a organização do Djó da Silva seria difícil. Quer dizer: o campo de lavoura do artista é criação. Tudo o que tenha relação com o mercado tem que ser outra competência e outra disponibilidade. Atrás do artista tem que haver uma organização que possa responsabilizar-se pela relação com o mercado. Como é possível a um artista pintar e ainda ter que levar o seu quadro a um operador turístico para comprar? Não seria melhor haver intermediários para fazer pacotes, não só de um produto, mas pacotes de produtos que incluam artes plásticas, música, dança, artesanato, teatro, saisfazendo as exigências do próprio mercado.
O fórum também serviu para criar nos artistas esta preocupação de organização. É preciso criar. Não basta só ter talento. É preciso formação e organização para que a cultura esteja à altura das exigências do mercado.
Prometeu para 2009 dotar o país de mais infra-estruturas na área cultural. Entre os projetos, destacam-se a criação do Museu Nacional, com sede, provavelmente, na Cidade Velha, do Museu de Arte Contemporânea, na Praia, e do Grande Auditório e Galeria de Artes, em São Vicente.
Tem conseguido cumprir todos os projectos por si anunciados?
Aí é que, às vezes, a Comunicação Social cobra, mas talvez porque a mensagem não passou da melhor maneira.
Em Cabo Verde, na política cultural, uma das coisas que precisamos, é da infra-estruturação cultural. Não se percebe que na Capital não tenhamos um espaço onde possamos acolher espetáculos para 3 mil ou 5 mil pessoas. Nós temos apenas salas de 600 pessoas, 2 salas para 600 pessoas. Precisamos de infra-estruturas culturais em todas as ilhas. Naturalmente, o que eu disse é que o Ministério da Cultura iria fazer tudo por tudo para ver se conseguia encontrar financiamento para o Museu Nacional, para um auditório-galeria em S. Vicente, porque S. Vicente é m polo importante de cultura; mas também as outras ilhas precisam; há sítios onde a necessidade é maior. Há necessidade também de um Museu de Arte Contemporânea, porque nós precisamos preservar, conservar o nosso património artístico.
Eu disse que ia fazer tudo por tudo para procurar o financiamento. Naturalmente, que não podemos fazer tudo isso com o Orçamento do Ministério da Cultura. Temos que encontrar parcerias. Se digo que vou buscar parcerias, quero dizer que ainda não tenho; e posso encontrar hoje, posso encontrar amanhã, posso encontrar daqui a 6 meses; quer dizer: é uma preocupação, não é um compromisso, não é uma proposta de que eu vou fazer. Eu li algures que o Ministro prometeu e que isso ainda não aconteceu. O mesmo aconteceu acho que é no Expresso das Ilhas, quando entrevistaram o Corsino Tolentino e disseram : "o Ministro da Cultura tomou posse em 2004, prometeu que em 2005 havia de oficializar o crioulo e já passou todo esse tempo e ainda nada. Que comentários faz?"
Ora, o Ministro da Cultura, só se fosse doido é que prometia que iria oficializar a língua cabo-verdiana, quando se sabe que nem o PAICV, nem o MpD podem, sozinhos, fazê-lo com a actual composição parlamentar. E se assim é, como é que um simples ministro pode?
O discurso do actual governo é de que a cultura é uma das nossas maiores riquezas. No próximo Orçamento do Estado qual a fatia que o Governo concede para o seu ministério?
O orçamento da cultura ronda os 240 mil contos.
E acha muito pouco...
Para a importância que a cultura tem, ela precisa de mais meios, efectivamente. Agora, é preciso perguntar se o país pode dar mais ou não? Se o país pode dar mais numa situação em que temos gente sem casa para habitar. Vivemos num país onde o desemprego ronda os 18%, na classe juvenil, é mais do que isso.
Eu acho que o Estado já está a fazer um esforço considerável. Aqueles que consomem e que podem financiar a cultura têm que participar mais. O turismo, por exemplo, quer uma cultura de qualidade, porque os turistas quando vêm a Cabo Verde, não vêm procurar apenas o nosso sol e a nossas praias: vêm procurar a nossa especificidade, a nossa cultura; portanto, o turismo precisa da cultura. Então que haja uma percentagem do turismo para a execução dos projectos ligados à cultura e que podem beneficiar o turismo.
Também a administração pública e privada devem contribuir para o aumento do mercado da arte. Eu, no meu gabinete, tenho quadros de Cabo Verde, Cerâmica de Cabo Verde, tecelagem de Cabo Verde. Se todos fizerem o mesmo, o artista terá mercado maior, terá o retorno financeiro, o que vai permitir que ele invista mais, fazendo coisas com mais qualidade, e, deste modo, a cultura vai-se desenvolvendo.
Eu costumo dizer que em Cabo Verde precisamos de um novo pensamento cultural que não se compadece em ficarmos sempre à espera do Governo e do Estado.
Quando, por exemplo, um artista pede um apoio ao Ministério da Cultura e o ministério não tem, ele diz que não existe uma política cultural, como se a política cultural fosse apenas ter dinheiro para distribuir. Nós temos que ter um pensamento segundo o qual o Governo tem responsabilidades e tem que assumí-las, mas a cidadania, sobretudo, que tem dinheiro, tem responsabilidades também. Os artistas e criadores, por seu lado, têm a responsabilidade traduzida no talento, na procura de formação e de organização. Neste sentido, a política cultural é da Nação e não apenas do Ministério da Cultura.
Ora, se a política cultural se resume em ter visão, estratégia, planos e programas de acção, isso nós temos no ministério; agora, vamos fazer de acordo com os condicionalismos, com o financiamento, com as condições que temos.
É preciso que a outra parte também assuma. Se as pessoas continuarem a pensar que o financiamento da cultura é da responsabilidade apenas do Ministério da Cultura ou do Governo, nós não vamos a lado nenhum; não alcançaremos o patamar desejado.
Quais as iniciativas do seu Ministério no sentido de ter pacotes culturais interessantes para o turismo?
O Ministério da Cultura não deve fazer pacotes culturais. Quem faz os pacotes culturais são os criadores, os artistas, através dos seus representantes. O Ministério da Cultura incentiva e cria as condições. Cria por exemplo a legislação, dá o reconhecimento, mas o resto não é o Ministério da Cultura é que faz. De outro modo seria entrar, digamos, no domínio daquilo que estritamente seria da geografia dos criadores. É como se o Ministério da Economia tivesse entrado dentro de uma empresa para fazer pacotes sobre o que a empresa faz ou deixa de fazer. Não, ele cria incentivos, cria legislação e procura, portanto, reunir algumas condições para que a coisa se faça.
Entretanto, eu acredito que com a criação da Agência de Promoção Cultural - mas ela não vai fazer pacotes -, ela vai estimular, incentivar o privado a fazer pacotes para o turismo, por exemplo.
Já está legislada a criação dessa agência?
Não, mas já está na proposta de Lei Orgânica do Ministério da Cultura.
Pelas suas palavras as empresas em Cabo Verde não praticam o mecenato cultural e não apoiam suficientemente os artistas. Está correcta a minha leitura?
Não, já há algumas empresas que fazem, mas podia haver muito mais. Repare: os artistas, às vezes, não têm essa consciência e temos que fazer um trabalho sobre isso. Quando uma empresa por exemplo apoia um artista, é o Governo também que está a apoiar. Porque uma empresa quando apoia, vai descontar no Fisco, e esse desconto é dinheiro que não entra no Tesouro. Indirectamente, o Governo está a dar também. Mas é verdade que o mecenato dá e, muitas vezes, recupera muito mais tarde, por exemplo.
Mas temos que reconhecer que há empresas que dão muito apoio dentro das suas possibilidades, até porque não podem ultrapassar determinados parâmetros. A Direcção Geral das Contribuições e Impostos é que fixa os parâmetros. Uma empresa por exemplo que tem pouco rendimento não pode dar muito à cultura, tem que haver uma percentagem mínima para esse fim.

O governo anunciou, no início do ano, a entrada em vigor do Acordo Ortográfico, no segundo semestre de 2009. Pode avançar-nos uma data precisa para a entrada em vigor deste acordo? A sua implementação será tão rápida quanto já foi revelado?
O plano que nós tínhamos para a entrada em execução do acordo ortográfico era o mês de Maio de 2009. Depois, nós entendemos que devíamos socializar mais o debate. Além disso, o Acordo Ortográfico teria muito mais impacto se entrasse em vigor em todo o espaço da CPLP. Portanto, verificámos que, em Maio, apenas o Brasil tinha aprovado a entrada em execução do acordo que já tinha sido aprovado. Então, entendemos deixar passar algum tempo para ver se os outros países, nomeadamente Portugal, reuniriam as condições para a entrada em execução. Voltámos a fixar uma outra data e dissemos que o nosso último prazo seria o mês de Outubro de 2009. Tudo isto para dizer que neste momento a proposta já está na Presidência do Conselho de Ministros e eu acredito que, possivelmente, será aprovado no Conselho de Ministros (OBS: foi aprovado em em 29 de Outubro).
O Acordo Ortográfico é um acto colonial do Brasil sobre Portugal com regras que não são recíprocas", afirmou à Lusa o escritor e jornalista português, Miguel Sousa Tavares. Quer comentar?
Esse escritor precisa de se informar melhor e de saber que havendo uma língua comum para todo o espaço da CPLP, tem que haver um acordo de harmonização, tem que haver cedências de parte a parte. Portanto, não há colonização de ninguém. O Acordo Ortográfico é quase que uma exigência do futuro da língua portuguesa. Se nós queremos valorizar a língua portuguesa, nós temos que fazer essa cedência. Portugal tem que fazer algumas cedências, o Brasil também. Parece que a cedência de Portugal é maior por causa da queda das consoantes mudas: digamos que a língua brasileira andou mais depressa que a língua portuguesa.
E tem mais falantes...
Sim, tem mais falantes. Mas veja que indepentemente disso, o Brasil não utiliza as consoantes mudas e hoje nós sabemos que as consoantes mudas são mudas de facto. Para quê estamos a utilizá-las se são mudas? No Brasil, cairam há muito tempo. E como isso está consagrado no Acordo Ortográfico, e como Portugal não chegou a fazer a supressão no momento em que o Brasil fez, então parece que há muita mudança.
Por que razão tenho que escrever Egipto com p? Por que razão tenho que escrever director com c, se essa consoante é muda? Por que razão há letras fantasmas numa escrita? Eu respeito, mas não posso concordar com o que diz esse escritor.
Se nós queremos a internacionalização da língua portuguesa, se queremos que nas instâncias internacionais o português seja língua de trabalho, se queremos que cada vez mais se aprenda o português, a escrita da língua comum tem que ser uma escrita racionalizada, económica e unificada. Também não deve ser uma mudança que tira a especificidade da língua. O linguista brasileiro, Celso Cunha, e o português Linley Cintra diziam que todo esse Acordo tinha que ir até a um nível da superior unidade da língua: quer dizer não pode ser uma mudança que leve o português a perder a sua identidade. Tem que ser dentro da razoabilidade.
Eu estive no processo do Acordo desde 1986. Estive no Rio de Janeiro a representar Cabo Verde no primeiro encontro. Já estive várias vezes em Portugal. Mas já no Rio de Janeiro eu disse que o Acordo era um acordo acanhado. Se tivesse que fazer uma proposta, seria muito mais abrangente. Mas, simplesmente, nessas coisas, temos que levar em linha de conta a cultura ortográfica dos utentes. A mudança não pode ser radical demais. Haverá outros acordos ortográficos.
A escrita é uma convenção. Eu acredito que o nosso Acordo já reuniu um vasto consenso. A sua entrada em vigor não significa pôr em prática imediata e obrigatoriamente.
No Brasil há uma fase experimental. Nós, no nosso diploma é de 6 anos. Dá-se essa tolerância para as pessoas se adaptarem, sobretudo o sistema do ensino e os jornalistas.
Por, Norberto Silva, em Holanda, em serviço especial
Expresso das Ilhas

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