quarta-feira, 7 de abril de 2010

POESIA:A INVENÇÃO DO AMOR-Por Daniel Filipe

A invenção do amor

Em todas as esquinas da cidade


nas paredes dos bares à porta dos edifícios públicos nas janelas dos autocarros


mesmo naquele muro arruinado por entre anúncios de aparelhos de rádio e detergentes


na vitrine da pequena loja onde não entra ninguém


no átrio da estação de caminhos de ferro que foi o lar da nossa esperança de fuga


um cartaz denuncia o nosso amor


Em letras enormes do tamanho


do medo da solidão da angústia


um cartaz denuncia que um homem e uma mulher


se encontraram num bar de hotel


numa tarde de chuva


entre zunidos de conversa


e inventaram o amor com caracter de urgência


deixando cair dos ombros o fardo incómodo da monotonia quotidiana


Um homem e uma mulher que tinham olhos e coração e fome de ternura


e souberam entender-se sem palavras inúteis


Apenas o silêncio A descoberta A estranheza


de um sorriso natural e inesperado


Não saíram de mãos dadas para a humidade diurna


Despediram-se e cada um tomou um rumo diferente


embora subterraneamente unidos pela invenção conjunta


de um amor subitamente imperativo


Um homem e uma mulher um cartaz denuncia


colado em todas as esquinas da cidade


A rádio já falou A TV anuncia


iminente a captura A policia de costumes avisada


procura os dois amantes nos becos e nas avenidas


Onde houver uma flor rubra e essencial


é possível que se escondam tremendo a cada batida na porta fechada para o mundo


É preciso encontrá-los antes que seja tarde


Antes que o exemplo frutifique Antes


que a invenção do amor se processe em cadeia

Há pesadas sanções para os que auxiliarem os fugitivos


Chamem as tropas aquarteladas na província


Convoquem os reservistas os bombeiros os elementos da defesa passiva


Todos decrete-se a lei marcial com todas as consequências


O perigo justifica-o Um homem e uma mulher


conheceram-se amaram-se perderam-se no labirinto da cidade


É indispensável encontrá-los dominá-los convencê-los


antes que seja tarde


e a memória da infância nos jardins escondidos


acorde a tolerância no coração das pessoas


Fechem as escolas Sobretudo


protejam as crianças da contaminação


uma agência comunica que algures ao sul do rio


um menino pediu uma rosa vermelha


e chorou nervosamente porque lha recusaram


Segundo o director da sua escola é um pequeno triste inexplicavelmente dado aos longos silêncios e aos choros sem razão


Aplicado no entanto Respeitador da disciplina


Um caso típico de inadaptação congénita disseram os psicólogos


Ainda bem que se revelou a tempo Vai ser internado


e submetido a um tratamento especial de recuperação


Mas é possível que haja outros É absolutamente vital


que o diagnóstico se faça no período primário da doença


E também que se evite o contágio com o homem e a mulher


de que fala no cartaz colado em todas as esquinas da cidade


Está em jogo o destino da civilização que construímos


o destino das máquinas das bombas de hidrogénio das normas de discriminação racial


o futuro da estrutura industrial de que nos orgulhamos


a verdade incontroversa das declarações políticas
...

 É possível que cantem


mas defendam-se de entender a sua voz Alguém que os escutou


deixou cair as armas e mergulhou nas mãos o rosto banhado de lágrimas


E quando foi interrogado em Tribunal de Guerra


respondeu que a voz e as palavras o faziam feliz


lhe lembravam a infância Campos verdes floridos


Água simples correndo A brisa das montanhas


Foi condenado à morte é evidente É preciso evitar um mal maior


Mas caminhou cantando para o muro da execução


foi necessário amordaçá-lo e mesmo desprendia-se dele


um misterioso halo de uma felicidade incorrupta
...

Procurem a mulher o homem que num bar


de hotel se encontraram numa tarde de chuva


Se tanto for preciso estabeleçam barricadas


senhas salvo-condutos horas de recolher


censura prévia à Imprensa tribunais de excepção


Para bem da cidade do país da cultura


é preciso encontrar o casal fugitivo


que inventou o amor com carácter de urgência


Os jornais da manhã publicam a notícia


de que os viram passar de mãos dadas sorrindo


numa rua serena debruada de acácias


Um velho sem família a testemunha diz


ter sentido de súbito uma estranha paz interior


uma voz desprendendo um cheiro a primavera


o doce bafo quente da adolescência longínqua
 
DANIEL FELIPE
Em 1925 nasceu Daniel Damásio Ascensão Filipe na ilha da Boavista, em Cabo Verde.
Ainda criança, veio para Portugal onde fez os estudos liceais. Poeta, foi colaborador nas revistas Seara Nova e Távola Redonda, entre outras publicações literárias. Combateu a ditadura salazarista, sendo perseguido e torturado pela PIDE.
Num curto espaço de tempo, a sua poesia evoluiu desde a temática africana aos valores neo-realistas e a um intimismo original que versa o indivíduo e a cidade, o amor e a solidão.
Faleceu em 1964 em Cabo Verde.
Jornalista e poeta. Co-director dos cadernos “Notícias do Bloqueio”, colaborou também assiduamente na revista “Távola Redonda” e realizou, na Emissora Nacional, o programa literário “Voz do Império”. Daniel Filipe iniciou a sua actividade literária em 1946 com Missiva, seguindo-se Marinheiro em Terra (1949), O Viageiro Solitário (1951), Recado para a Amiga Distante (1956), A Ilha e a Solidão (1957) – Prémio Camilo Pessanha; o romance O Manuscrito na Garrafa (1960), A Invenção do Amor (1961) e Pátria, Lugar de Exílio (1963). O amor e a solidão, o indivíduo e a cidade recortam-se nos seus versos com acentos originais, fluentes e por vezes inesquecíveis.

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